quinta-feira, 3 de agosto de 2017

NINA MOLINHA




Então, agora essa é sua nova casa. Mal ela acabou de dizer isso e eu corri. Aquele chão liso e cheiroso, de retângulos de madeira, bem diferente dos de antes, de cimento e pó de barro, a poeira que nunca sai da nossa pele e deixa tudo  áspero, o pelo, o nariz, até dentro das orelhas, com um cheiro não tão bom quanto o que eu tenho agora, depois que ela me enfiou debaixo d'água, me esfregou e eu lambi o sabão.

Naquela hora que ela disse então, agora essa é sua casa, eu corri, vi tudo rápido e voltei. Ela estava na porta. Corri de novo.  Ela me olhava. Escorreguei numa faixa comprida e colorida que ela tem entre o que chama de sala e o que chama de quartos. Essa faixa tem uma textura grossa, se eu soubesse das coisas diria que tem trama intercalada de fios e uns fiapos mais robustos nas pontas,  e essa faixa colorida é muito boa para cavar, me encolher e tirar umas sonecas, descobri depois. Gosto de desfilar ali também.

Mas primeiro só fiz correr. E pular. Pulei nela. Você vai ficar comigo mesmo, quis perguntar. Ela me acariciou a cabeça. Vai? E corri. Vi um espaço quadrado, com uma mesa e uma cadeira vermelha. Dizem que não vejo cores, mas vejo tudinho. Vermelha. Vi um sofá cinza perto da janela e noutro dia eu subi nele, nas costas dele, e fui ver lá fora e ela me deu uma bronca, disse ei, que isso, aí não, numa voz tão estranha que fiquei com medo. Em caso de dúvida, e eu tenho muitas dúvidas,  não vou subir e olhar dessa coisa que chamam de janela. Isso não é pra mim, eu sei, mas fazem uns barulhos lá fora que eu fico curiosa, mas não é pra mim, eu sei e não quero despertar essa voz que diz não. Nesse quadrado, que é o quarto, aprendi depois, tem um móvel engraçado, alto, cheio de tábuas, e dentro dos buracos das tábuas, tem uns negócios menores que ela pega, abre, fica parada olhando, e depois de um tempão fecha. Que é, Nina, nunca viu? São livros. Ah. Ela tem montes de livros e esses eu não posso mastigar, já fui advertida. Aqui não. E além de livros,  uns bonequinhos fofos moram ali. Ficam parados, não correm nem pulam.  São pequenos, cabem bem na minha boca, são meio arredondados e tem umas pontinhas macias. Eu tentei pegar, devem ser ótimos para esses dentes  lá de trás que ainda estão pequenos e coçam. Ela disse que são bonequinhos de Game of Thrones e que isso eu não posso pegar mesmo, acentuou o mesmo. E me deu uma vaquinha que apita, toda molinha, de lã. Eu gosto. Mas os bonequinhos são mais legais, especialmente o que tem asas enormes, que ela diz que tem um nome: Drogon.

Eu não tenho asas, mas na praça tem uns bichos esquisitos meio pretos, meio azuis,  de bico escuro, fazem um barulho que não sei fazer, parece que é purruc purruc,  e ficam comendo areia, aí, quando eu chego perto,  eles saem para o alto. Voaram, ela diz. Eu pulo atrás deles, mas eles vão alto. Esquisito. Eu não sei fazer isso.  Na praça tem lago, eu quis beber água dali mas ela não deixou. Lá embaixo na água tem uns outros bichos estranhos, cor de laranja, um dia ainda vou mastigar e ver se é bom para os dentes. Se ela deixar,  ela é esperta, me segura. Eu gosto das plantas e árvores, isso é bem legal. E aí a gente passeia pela grama, é um mundo de cheiro: de comida, de pipoca, de cerveja, de xixi de passarinho, de cachorro, de gato, de rato, de gente, de cigarro, de pão, de formiga, de joaninha, de fruta da amendoeira, de peixe da feira que foi na sexta, de chuva que ainda não secou, da maresia que vem com o vento... um cheiro do mundo.

A minha casa é cheia de fotos do meu irmão e eu herdei a cama dele. É boa, macia, cheia de carrinhos e ônibus de Londres, mas a dela é melhor. Ela diz que ele era um grande cachorro, que virou estrelinha e está no céu dos cachorrinhos, junto com a mãe dela, o pai, o irmão e a amiga de infância, a Ana, e que São Francisco está olhando pelo Bart e protegendo a todo mundo, a mim também, mas na foto eu só vejo um cara baixinho, preto, com um certo sorriso debochado na boca, um orelhão comprido e me pergunto: como alguém pode ter patas tão pequenas?

Ela, essa moça que me disse que agora é minha mamaca, levou horas para se decidir. Ficou comigo no colo e achei que ela tinha a cara boa,  dei beijos e tentei conquistar. A gente tem que fazer assim: pegou no colo, dá beijo; botou no chão, sobe no colo; não deixa subir, se estica e faz charme, mexe nela com a patinha, faz cara de pobrezinha, que ela vai pegar.  E aí dá beijo. Fiz isso umas vezes, eu me repito bastante. Deu certo. Ela demorou, gostou de um gorducho café com leite que estava lá junto comigo, mas eu fiz charme, charme, charme, pata, pata, pata, beijo, beijo, beijo. E aí ela decidiu.

Vamos embora, ela disse no dia que me conheceu,  essa coisa amarrada no meu peito e ela segurando uma cordinha, que às vezes eu tenho que morder, e andamos, andamos, passamos numa loja, compramos coisas chamadas cobertor, comida, sabonete, pratinhos e um biscoito do qual ainda não gosto. O cobertor é de figurinhas de elefantes e rinocerontes, sol e nuvens, azulzinho e amarelo. Eu pedi colo, fiquei cansada, e no fim chegamos. 

E foi aí que ela disse, então, agora essa é sua casa, foi quando eu corri, e vi o quarto, e corri. E no outro quarto vi a cama dela, e subi, e ela disse não, mudando de voz, eu não entendi direito e subi, e ela disse não, e eu desci, mas subi de novo, e estamos assim, eu subindo e ela dizendo não, mas subo, e às vezes ela faz que nem vê e deita do meu lado e diz minha menina tão pequenina vai ser bailarina mas depois esquece todas as danças e também quer dormir como as outras crianças. 

Eu não entendo o que é bailarina, mas eu fico toda molinha.





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