segunda-feira, 29 de junho de 2015

BIKERS



Cinco e meia da manhã. Praia da Barra da Tijuca. É a hora que o grupo de ciclistas chega à Lúcio Costa para treinar para o Iron Man. Cerca de quarenta pessoas participa e pedala nas praias da Barra e da zona sul, em dias de semana, e se aventura pela Floresta da Tijuca ou por estradas, aos sábados e domingo.

No horário, garotas de programa que fazem ponto na Lúcio Costa estão se despedindo da labuta e tratam os ciclistas com carinho, acenando e falando, voz lânguida: “oi meninos, tudo bem? Pedalem gostoso”... Outras são menos calorosas e controlam o horário da turma: “Ei, estão atrasados”...

Um velho vira lata malhado parece fugir de uma vila remota e de repente aparece na pista, late e corre atrás das bikes. Um ciclista ou outro dá atenção e o bicho vai atrás. Todo dia ele faz sempre tudo igual. Depois, cansa e pega o caminho de volta para casa, rabo entre as pernas.

Na zona sul, quem chama atenção é um velhinho bem idoso e muito curvado que, pontualmente às 10 para as 5, passa em frente ao Hotel Praia Ipanema, mal aguentando o peso do mundo, mas segue andando como lhe é possível.

Os bêbados no Arpoador são uns bagunceiros. Provavelmente passaram a madrugada numa mesa de bar, jogando conversa fora, até a hora em que o garçom os expulsou, para poder tocar a vida e começar – ou acabar -- mais um dia de trabalho. Volta e meia esses  sobreviventes da madrugada resolvem ir atrás dos ciclistas, para jogar mais conversa fora. Tentam tocar neles. Outro dia um ciclista mais nervoso ameaçou tirar a sapatilha para bater neles.

Na zona sul, volta e meia os ciclistas esbarram em carros com meninas que os cortejam, convidando-os para esticar a noitada, talvez até a hora em que o sol já esteja a pique. Perdem a cantada, treinar é preciso.

Assim como os bêbados, alguns moradores da Delfim Moreira são folclóricos. Ficam nas janelas de seus apartamentos e quando o grupo passa, fazem uma algazarra, torcem, cantam o jingle do Senna.  

Quando o treino é no Alto da Boa Vista, os bikers param na Mesa do Imperador para uma sessão de corrida no asfalto, e são os garis que ajudam a tomar conta das bicicletas.


É claro que um clima tão bacana desses é interrompido pelo trânsito primitivo que reina na cidade. Vans e ônibus têm o mesmo comportamento estúpido de sempre: avançam sinal fechado, não dão passagem, correm demais. O que surpreende é a selvageria de outros veículos, que deveriam zelar pela ordem, como os ônibus escolares. Os motoristas se irritam quando as bicicletas passam e têm que parar no sinal para elas. Buzinam, falam mal, ficam apertando a embreagem e ameaçam avançar. Se pudessem, passariam por cima dos ciclistas. 

Respeito ao próximo não é o  forte.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

OSLO

Existência, vida, trabalho, família, amor, sexo, fraternidade, alegria, juventude, velhice, morte. Esses são alguns dos temas das 212 esculturas de bronze e granito da autoria do artista norueguês Gustav Vigeland, expostas no Parque Vigeland, em Oslo, a linda capital da Noruega.

Paz, contemplação e tranquilidade era o que tínhamos naqueles dias passados em Oslo, há um ano, e que eu repetiria, hoje, agora, se pudesse.
Entrada do parque Vigeland
Entrada do parque Vigeland
O parque fica a uns três quilômetros do centro da cidade, a partir do Palácio Real, e tem 32 mil metros quadrados, com jardins muito bem cuidados, fontes de água potável e, no verão, muitas flores que dão uma cor toda especial ao local.

Esculturas no parque VIgeland
Esculturas no parque VIgeland
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Na Escandinávia, optamos por fazer como os nativos: ir a todos os lugares de bicicleta, e em Oslo não foi diferente. Motoristas e pedestres respeitam as leis de trânsito, de forma que pedalar “em norueguês” é muito simples. Há empresas que alugam bicicletas e fazem bike tours, o que é muito bacana, pois criam uma chance de se ver um outro lado da cidade e ter informações que vão além das apresentadas pelos guias tradicionais de turismo.

Com uma população de cerca de dois milhões de habitantes, Oslo é considerada a cidade com melhor qualidade de vida, e a Noruega lidera o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A renda média é de 48.688 dólares, a expectativa de vida, de 81 anos, e os noruegueses têm mais de 12 anos de escolaridade.

Sentimos esse alto padrão de qualidade de vida e de educação assim que chegamos. Aeroporto bem sinalizado, espaçoso, limpo, bonito e eficiente – as malas chegam às esteiras praticamente ao mesmo tempo em que desembarcamos do avião e percorremos o caminho até o saguão. Toda a sinalização está disponível em inglês, e há um estande próximo da saída onde funcionários auxiliam a encontrar hotéis, meios de transporte e dão outras informações úteis aos viajantes. Transporte público, como ônibus e metrô, são eficazes e pontuais, além do trem que liga o aeroporto ao centro e a outras regiões do país. A cidade é limpa, as ruas, iluminadas e a sensação de segurança é alta.

Uma região interessante é a de Aker Bridge, um antigo píer que foi remodelado a partir da década de 1980 e, em 1998, ganhou shopping center, cinema, escritórios e edifícios residenciais, além do Museu de Arte Moderna Astrup Fearnley, um prédio de vidro e metal de frente para os fiordes. Segundo o guia do bike tour que fizemos, um polonês que vive na cidade há anos, “se você tiver uma carteira gorda, pode comprar um apartamento de 40 metros quadrados pela bagatela de 2,5 milhões de dólares naquela região”.
Museu de Arte Moderna Astrup Fearnley
Museu de Arte Moderna Astrup Fearnley
Entrada de edifício em Aker Bridge
Entrada de edifício em Aker Bridge
Um pouco mais adiante, ainda pela orla, em frente ao City Hall – a sede da prefeitura, onde é feita a entrega dos prêmios Nobel – ficam as empresas que fazem passeios aos fiordes e às regiões próximas, e ferry boats para a península de Bygdøy, onde ficam alguns museus, como o Viking.

O Museu Munch é uma parada obrigatória, no bairro de Tøyen, e além da obra do principal artista norueguês, o expressionista Edvard Munch, mostra sua trajetória, seus estudos e pesquisas na área de ciências e medicina, uma de suas obsessões.

Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu    parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza.

Munch escreveu em seu diário esse momento, considerado a base para a série de quatro pinturas, intituladas Desespero, feitas entre 1893 e 1910, e que, depois de sua morte, ficaram conhecidos como O Grito. Ele fez quatro versões para ir substituindo as originais à medida que elas eram vendidas. Duas podem ser vistas no Museu Munch, onde também estão expostos esboços anteriores à obra. A primeira versão, de 1893, está na Galeria Nacional de Oslo e o quarto foi arrematado por colecionador particular num leilão.

Não houve nenhum desespero nosso ao passear pelo pier, vendo ao longe o fiorde. O céu estava azul claro e o sol começava a morrer, às 23:30. Às 3 da madrugada, um lusco fusco iluminava a noite de verão em Oslo. No verão, não anoitece nunca.
Anoitecer, por volta de 23:30.
Anoitecer, por volta de 23:30.

terça-feira, 9 de junho de 2015

LÍDERES, ARQUI-INIMIGOS E RINOCERONTES

Uma neta perde o avô que a criou. Um avô que foi, para ela, o pai que ela não teve. Um avô que era o sonho de qualquer neta, amoroso, compreensivo, justo.   

Ele era Ytzhak Rabin, primeiro ministro de Israel, assassinado por um extremista judeu em 1995, logo após fazer um comício em Tel Aviv, e pouco tempo depois de ter apertado a mão de Yasser Arafat, um arqui-inimigo, presidente da Organização de Libertação da Palestina. Em 1994, ambos foram agraciados com o Nobel da Paz.

A neta em questão  é Noa Ben-Artzi Pelossof, autora do livro Meu Saba, em Nome da Dor e da Esperança, cujo avô era Rabin.  Transformado em peça pelo competentíssimo diretor Daniel Herz, Meu Saba, o resultado é um espetáculo emocionante, cujo tema principal é o amor e os laços afetivos, mais do que  política ou religião.

Clarissa Kahana, atriz de Meu Saba

A história se passa durante o velório de Rabin, nos 30 segundos que separam a cadeira de Noa, ao lado de sua família, do púlpito onde está o microfone em que ela fará um discurso em homenagem ao avô. A menina, aos 19 anos, está cercada pelos maiores líderes mundiais da época. É uma agonia o que sente: o medo de falar diante daquela gente toda, o assombro por um judeu ter assassinado seu avô, a dor da perda, todos os papeis que o avô representou para ela.

Um dia antes, assisti a O Rinoceronte, de Ionesco, numa montagem belíssima do Théâtre de la Ville de Paris, dentro de um festival que a Cidade das Artes estava sediando. Impactante. Inexplicavelmente, os habitantes de uma vila se transformam em rinocerontes à exceção do protagonista, que assiste a tudo incrédulo. Ionesco escreveu a peça em 1959, para mostrar sua estupefação com o nazismo na Europa.

Cena de O Rinoceronte, do Théâtre de la Ville de Paris 

A estupefação se dá diante do nazismo ou de qualquer outro contexto, com uma minoria que se impõe e, sem ser questionada, domina toda uma sociedade.  Mais ou menos como o que vivemos atualmente, a violência bárbara em todas as esferas, a corrupção, a falta de educação, a falta de cultura. A falta. Apesar dos indicadores sociais terem melhorado, dizem.

O que pode explicar as taxas de mais de 53 mil vítimas de crimes violentos anuais, a letalidade da polícia, os 50 mil estupros anuais?  Como podemos nos ver como nação se 32% da população não confiam no Poder Judiciário e só 33% acreditam no trabalho da polícia, segundo pesquisas?

Não consigo entender como um país em desenvolvimento, entre as dez maiores economias mundiais, há 15 anos vivendo no século 21, pode ainda discriminar tanto o outro, por orientação sexual, gênero, cor da pele, classe social.  

Lembro um artigo da Cora Rónai que, voltando de uma viagem e chegando ao Galeão, diz que  tem pena de nós, brasileiros, “que continuamos aqui, num país cada vez mais hostil, que conseguiu a proeza de passar da barbárie à decadência sem atravessar qualquer período de civilização”.

Eu também me assombro com essa capacidade que tem o chamado povo cordial de permanecer na incivilidade, seja em casa,  ainda cercado por suas empregadas, seja com os vizinhos, para quem se nega um bom dia ou um obrigada. Na incivilidade do trânsito violento. Das escolas, com alunos ameaçando os professores. Da falta de escola. Dos meninos malabaristas dos sinais, lavando os vidros do carro. Das filas dos hospitais. Das meninas prostitutas da Avenida Atlântica ou em qualquer cantão por aí. São tantas as barbáries que me perco tentando enumerá-las.

E aí, volto ao começo desse texto, e vejo a falta que faz um líder capaz de apertar a mão de seu arqui-inimigo e, com ele, tentar encontrar uma solução. Por enquanto, os arqui-inimigos estão ganhando e transformando todos nós, aos poucos, em rinocerontes.


quinta-feira, 4 de junho de 2015

SOBRE LAMBIDAS E ARREPIOS

Um dia, há tempos, fui à casa de uma amiga que tem dois labradores. Se os cachorros são tudo, labradores são um pouco mais ainda (e daschunds também, Bart não permite que eu conclua a frase sem fazer loas à sua raça).

Mas estava lá, conversando, desatenta ao mundo à minha volta, quando Thelonios Monk,  o labrador mais velho, veio por trás de mim, pôs as patas no meu ombro e me deu uma lambida gigantesca no pescoço. O hálito de alguma fruta. Abacate? A língua morna, molhada. E  eu fiquei arrepiada.

Contei essa história por aí e todo mundo riu. Como assim ficou arrepiada, foi a grande questão. Língua é língua, pescoço é pescoço, e quando há um encontro entre eles, um certo eriçar de pelos é inevitável. Não há muita explicação científica para isso.

Depois, Thelonios achou um paninho velho e pôs-se a esfregá-lo a meus pés.

Abaixo, a cara de bobo de Thelonios, que tem até Facebook e está liderando uma manifestação, leio agora, contra fogos de artifício. Estou dentro. E Bart também!