terça-feira, 25 de agosto de 2015

O FUTURO NÃO É MAIS COMO ERA ANTIGAMENTE


Da primeira vez que foi a Brasília, lá pela década de 90, a mulher sentiu um impacto grande. Estava feliz, tinha vinte e poucos e sonhos pela frente. Como um João de Santo Cristo, ela ficou bestificada, não viu as luzes de natal, a época era outra, mas que cidade linda, pensou ao cruzar o eixo central, passar pela esplanada dos ministérios, o Congresso concretista erguido, a Catedral, os holofotes sugerindo vida aos monumentos.

O deslumbramento durou menos de um dia. Instalada numa das quadras, ela não conseguiu voltar para o apartamento depois de um passeio. Para a mulher, era impossível identificar o prédio onde estava hospedada tamanha a falta de  personalidade das fachadas. Logo ela, com um sistema de localização natural, que lembrava de referências de qualquer cidade que visitava e conseguia se situar bem em alemão, árabe ou sueco, se sentiu perdida ali, numa 403 sul.  Ou norte.   

Por mais que lhe expliquem a arquitetura baseada em um avião, não tem jeito. Para essa mulher é impossível se locomover assim, a esmo. Talvez ela não goste de aviões e isso a impeça de ter uma relação mais natural com o lugar.  Ela gosta mesmo é de viajar, é fato, mas preferia que já houvesse um teletransportador que a levasse para onde ela quisesse ir sem precisar de aeroportos, esperar horas pelo embarque, despachar malas,  passar pelos malditos detectores de metal, como ela diz, ser obrigada a ficar descalça ou ter a bolsa escolhida aleatoriamente para ser revistada. São pequenas coisas que se transformam num transtorno, ela entende isso. Mas viaja, fazer o quê, se pergunta. E viaja.

Também não é grande fã de Niemeyer, mas não fica a repetir isso por aí. Os tempos atuais andam tão extremos que não gostar do arquiteto pode ser considerado um ato de direita, de querer a volta da ditadura, sabe-se lá. Cada vez mais a mulher acha esquisitas as tentativas de enquadramento das pessoas em categorias previamente catalogadas, tão comuns nesses radicalismos dos que seguem cartilhas. Ela se sente  sem turmas, isolada. Não é disso ou daquilo, não é assim nem assado. É de tudo, e não é de nada. É. Foi. O futuro não é mais como era antigamente.

E ela gosta ainda menos de ir ao Congresso, mas disso o Niemeyer não tem culpa. A vida política se transformou num jogo, puro poder e dinheiro. Sempre foi assim, dizem. É. Sempre foi. A mulher sente mal estar ao cruzar as fronteiras daquelas Casas, caminhar pelos labirínticos corredores forrados de carpetes opressivos, criadouro de ácaros contemporâneos do próprio Juscelino.  Gabinetes e plenários decorados com móveis alquebrados, em péssimo estado de conservação. É o que ela pensa. E faz as contas e vê que se paga, por ano, mais de 33 milhões de reais por cada (e pede perdão pelo cacófato) um dos 81 senadores e quase sete milhões para cada um dos 513 deputados federais. Fora os funcionários, num número obsceno, visivelmente sem ter o que fazer, esperando com ares tediosos para bater o ponto desde as nove horas da manhã.  Acha imoral, escorchante, um deboche.  Mas é só a opinião dela, não há nada de errado em ter opinião ainda, não? Ainda.

Bonito, em Brasília, é o céu, vislumbra, eternamente em cúpula, com nuvens gorduchas. É o que vale a pena, ela pensa enquanto corre no fim da tarde. Alguma coisa tem que valer a pena. E respira fundo olhando o horizonte do parque de grama amarelada. Ninhos de coruja cavados na terra barrenta. O sol se esconde por trás de um prédio quadrado de janelas pequeninas e os últimos raios tornam a cidade acobreada.

Ao chegar ao Rio, a umidade. A praia se escancara despudoradamente no caminho.  A ressaca traz  ondas ao calçadão.

Lar, Doce Lar escrito no capacho da porta do vizinho. A casa dela, da mulher, vazia. Capacho cru, sem mensagens. Ninguém mais mora ali.  Acende a luz. O manjericão, que florescia na cozinha desde maio, está seco como a paisagem de Brasília. O manjericão não podia fazer isso, logo o manjericão, tão bem cuidado.  Que lhe rendia um pesto grosso no molho da massa, misturado a nozes e queijo parmesão. Ressequido, sem vida.  Atira a planta no lixo. E o gesto lhe faz os olhos ficarem mareados.  

Desfaz a mala. Separa as roupas para lavar.  O futuro não é mais como era antigamente.




quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ANA CRISTINA

Ana, de vermelho. Anna, de amarelo.


Vinícius tem um poema que começa assim: "Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da infância."


Há alguns anos escrevi isso para a Ana Cristina, primeira amiga de infância de quem tenho lembranças. Nós  nos conhecemos, eu com quatro anos, ela com cinco, no dia em que me mudei para a casa onde passei a infância e adolescência, em Teresópolis. Ela morava com os avós ao lado. O muro de concreto dividia o território e vivíamos ali, um banquinho ou uma escada nos ajudava a conversar cara a cara. Ou então das janelas dos nossos quartos, um de frente para o outro. Batíamos muito papo, não me recordo sobre o quê, mas era muito, era o dia inteiro.

Brincar de boneca de papel era a diversão favorita. Nem sei se existem mais as bonecas de papel, eu tinha o Gilson e a Sarita, minhas preferidas, ele de cabelo preto, ela loura de maria-chiquinha.

Nos meus aniversários, além da festinha em casa com cachorro quente, rissoles, bolo e brigadeiro, sempre saíamos para jantar fora, papai, mamãe, eu e a Ana. Nos aniversários dela, tinha o melhor estrogonofe do mundo, e o bolo de chocolate mais espetacular, tão boa cozinheira é a mãe dela. Não existe estrogonofe ou bolo de chocolate iguais.

Iracema era sua avó, uma senhorinha de cabelos grisalhos, bochechuda e boa como são as avós.  Todos os dias, às seis da tarde, ouvia a Ave Maria no rádio, botava a água fresca no copo para ser benzida, acendia uma vela e, quando eu estava lá, me ajoelhava e rezava junto. Até hoje, quando ouço a Ave Maria de Gounod, sinto um aperto no peito e me vêm à memória a reza, a água, a vela. Foi ela quem cuidou de mim quando o papai ficou no hospital e era a ela quem eu procurava quando a mamãe tinha crises de enxaqueca. E aí o almoço era sempre bife à milanesa, que a Iracema sabia que eu adorava.

Cosme e Damião era uma festa para aquela família. Havia almoço com comida mais chique, ia sempre muita gente, minha avó, o padre inclusive, e depois saíamos numa Kombi para distribuir balas para as crianças e velhinhos no asilo. Era uma alegria os dias que antecediam a grande data, porque ajudávamos a encher os saquinhos de doce e acabávamos devorando um monte deles. Ah, as marias-moles, ah os pés-de-moleque.

Como eu, a Ana adorava bichos, mas ela ganhava os animaizinhos e a avó não deixava ficar, vai dar muito trabalho, então depois de chorar muito e perceber que não adiantava insistir, ela os levava lá para a minha casa, onde tinham boa acolhida.

Juntas, tivemos pintinhos amarelos adoráveis que viraram galinhas insuportáveis e depois a mamãe teve que passá-las adiante, arrumar um galinheiro. Além do trabalho que davam, eu morria de medo delas, que corriam atrás de mim, as asas abertas. E aí nossa dálmata Tuska corria atrás das galinhas. E então a mamãe corria atrás de todos os bichos, me acolhia do ataque das galinhas e ficava tudo bem. Mas era isso o dia inteiro e alguém levou as galinhas embora. Nunca mais se soube delas.

Tempos depois, tivemos tartarugas que viveram anos. Dávamos alface e cenoura para as bichinhas. Um dia acabaram sendo comidas pela Ritoca, minha Fox paulistinha. Como, Ritoca, você fez isso, só deixou as casquinhas? Ela baixava a cabeça, olhava as próprias patas e tentava abanar o cotoco de rabo.

Ana e eu sempre adoramos cachorros. Um dia ela achou um vira-lata na rua e levou para casa. Deu banho, comprou caminha, pratinhos e levou ao veterinário, onde o bicho foi vacinado e vermifugado. Chegou em casa, olhou o cachorro e percebeu que ele era muito feio. E aí desandou a chorar. E sempre que chorava, corria lá para casa e quem a consolava era a mamãe. Ela deu o cachorro feio para alguém e depois ganhou a Petit, uma cocker preta que nunca se deu bem com a Ritoca. O muro virou uma faixa de gaza para aquelas duas.

Da minha varanda, hoje em dia, vejo seu prédio. A lagoa no meio.  Continuamos vizinhas por um tempo, mas Ana se foi há três anos. Como o universo age assim, e leva a Ana embora para outra existência, deixando isso tudo aqui, marido, filhos, um shitzu, o Chope, amigos, eu me pergunto. Não acho respostas.

Hoje seria dia de festa. Ana faria 49 anos. Se fosse na década de 70, haveria um hi-fi, nós usaríamos calças bocas de sino e frente única, serviriam o famoso estrogonofe. Há três anos, houve um churrasco, onde rimos, nos divertimos. Compramos uma blusa igual, combinávamos quando uma ia usar, para a outra não copiar.

Talvez tenha festa onde ela está. Meu pai e meu irmão estão juntos, também faziam aniversário hoje, e quem sabe não apagam a velinha juntos. De um bom bolo de chocolate.



sábado, 8 de agosto de 2015

OITO DE AGOSTO

Bart hoje, feliz depois de devorar um prato especial

Durante um longo tempo, desde meus doze anos, o dia 8 de agosto foi uma data triste para mim.  O dia que meu pai morreu.

Todos os meses, no dia 8, era marcada uma missa, em que o nome dele era lembrado, e o padre pedia paz para sua alma. Eu detestava aquelas missas, mais ou menos como detesto todas as missas até hoje.

Mas não é para falar de missa que escrevo. Não me importam as missas.

Muito depois, eu já com uns vinte e poucos, o 8 de agosto passou a ser uma data a se celebrar. Era aniversário de um namorado de quem gostei muito. E assim, era dia de festa, de jantares e brindes, flores na casa, presentes e um monte de beijos.

O namoro acabou um dia. Os namoros acabam, aprendi isso. Os amores mudam.

E, em 2003, o 8 de agosto passou a ser um dia mais que especial, marcado por uma alegria incrível.

Recebemos uma ligação de um amigo, dizendo que a cachorrinha tinha tido seis filhotes, um machinho seria nosso. O Bart nasceu, vibrei. Ele sempre se chamou Bart, desde que o amigo disse que a mãezinha tinha ficado prenha. Minha primeira reação, depois de pular como uma criança, foi comprar uma bolinha, com a qual ele brinca até hoje, pratinhos de água e de comida, uma caminha e uma manta. Pronto, o enxoval completo para recebe-lo.

Mas havia que esperar o desmame. Foram alguns dos quarenta e cinco dias mais longos da vida. E finalmente, em meados de setembro, fomos à casa onde ele nasceu, em Jacarepaguá.  Bart nos foi apresentado, ainda com o nome de Pateta, dado pela família que o mimou nos primeiros dias.  Era uma minhoquinha pequena, do tamanho de um pé, patas muito curtas, as unhas pretas finas que arranhavam a pele, o pelo macio com falhas atrás das orelhas, o rabo esticado, o andar descoordenado dos filhotes. Frágil, se atrapalhava para sugar os restos de leite da mãe, que perdia a paciência, dava patadas, o afastava, ele e aos outros filhotes, de suas tetas doloridas. Chega, quer gritar, vão ser gauche na vida. Mas não gritava, não podia fazer isso, era só uma cadela gorda e rosnava e mostrava os dentes. Estava cansada daqueles seis, queria sua boa vida de volta, dormir sob o sol ao pé da árvore, correr pelo gramado, deitar de barriga para cima.

Eu o peguei no colo, cheirei sua cabecinha, acariciei sua barriga rosada, o elevei à altura do rosto e beijei seu peito em forma de barril.

Bart no dia que chegou em casa


No caminho para sua nova casa, o bichinho chorou em meu colo, enrolado na manta. Em três dias já tinha conquistado seus espaços, se divertia com caixas de papelão, corria descoordenado pela sala. Um dia, cheirou uma tomada e levou um choque no focinho molhado. Ficou tão assustado que se refugiou no box. De uma outra vez, morreu de medo do guarda-chuva aberto. Como aquele bicho magro pode ficar tão grande, era a pergunta que fazia.

Há doze anos é meu companheiro inseparável e a gente se comunica só pelo olhar. Eu entendo tudo o que ele quer: a água de coco que ele pensa brotar da geladeira, a banana, a hora dos palitos comestíveis. Ele entende tudo o que eu quero: uma lambida de carinho, um abraço, que deite na minha perna enquanto vemos televisão. E todos os anos, no dia 8 de agosto, ele ganha o prato preferido: arroz com frango desfiado e cenoura. Faz plantão na frente do fogão, chorando baixinho, enquanto a comida é preparada. O choro se transforma em uivo até o regabofe esfriar.  Acabou de comer, está satisfeito. Agora parte para o sono da tarde.

Frango com arroz e cenoura, prato favorito do Bart


Ao Bart, o George Clooney dos cachorros, o  grisalho mais charmoso do mundo,  que ainda destrói almofadas como um psicopata – o Bart, o George eu não sei --  um aniversário mais que feliz, e mais alguns anos pela frente, porque te amo demais. E esse amor não muda nunca.