terça-feira, 1 de setembro de 2015

SOLITÁRIO E INFELIZ


Ao abrir, sonolenta, a porta e pegar o jornal,  numa ação repetitiva e automática, uma espécie de máquina do tempo engole a mulher. No vácuo entre a cozinha e o corredor,  ela está de volta aos anos 80. Recessão, grita a manchete. Indicadores negativos arrumados em caixinhas, brilhando de tão vermelhos. Investimentos e construção civil desabam. PIB cai. Greve na Universidade Federal.  

Ela separa os cadernos de cultura e comportamento. O resto nem é lido. Sequer folheado. Os analistas políticos e econômicos a assustam, tanto quanto naquela época em que o dinheiro era tão contado, aplicado no overnight e não valia nada no dia seguinte.

Depois de décadas mergulhada num canto qualquer do esquecimento, a vinheta de notícias urgentes vem à tona. O alarde do tema, que era meio gritado para chamar a atenção, faz o coração dar uns pinotes, ainda hoje, como naquele tempo. Interrompia a programação e trazia uma catástrofe qualquer. A pele da mulher se arrepiava ao ouvir os acordes. A vinheta que emergiu do esquecimento precedia a então poderosa ministra da economia frente às câmeras, cercada de microfones, falando algo como fechar as torneirinhas. E não era crise de abastecimento hídrico, mudança climática, nada era tão sofisticado naqueles anos. Confisco de poupança. Inflação de dois dígitos. Três dígitos.  Sarney. Collor. Ainda.

A vida resolveu lhe esfregar os anos 80 na cara assim, sem mais nem menos, de um dia para o outro.  Que manhã estranha a de sábado, ela pensa. Banhada de sol, como convém aos sábados. Um abafamento fora de época. É inverno. Deslocado no tempo, um dia lá do passado remoto atirado  com um arrebatamento sem sentido.

O cachorro de agora pula em suas pernas, pedindo qualquer coisa, como pulava a paulistinha da adolescência, que ficou com sua mãe enquanto ela, a mulher, fazia  faculdade e estágio. Os vinte e tantos anos os separam, nunca se conheceram, não haveria tempo para isso. O comportamento é o mesmo, o afeto, igual. Carinho e comida, água gelada. Sempre pede alguma coisa esse cachorro de agora. É um insatisfeito. Carente. E se acaso não há o que querer, abana o rabo até a mulher ficar de quatro e beijar seu pescoço.  

A mulher sempre gostou de cachorros. Quando pequena, desenhava um traço vertical e comprido, dois traços menores para as pernas, outros dois menores ainda para os braços, uma bola de cabeça, umas minhoquinhas como cabelo. Rabiscava um cilindro pequeno ao lado de seus pés, completado por quatro tracinhos bem minúsculos servindo de patas e um quinto risco, de rabo. Uma cabeça também cilíndrica, de onde pendiam orelhas triangulares. Um laço os unia, saindo do pescoço imaginário do cão até suas supostas mãos. Ela traça esse auto-retrato de memória enquanto espera o pão esquentar. Daí amassa o papel e joga fora.

A mulher afaga o cachorro, beija seu pescoço.  Corta melão em cubinhos e lhe oferece. E fica parada olhando o bicho engolir os pedaços na fome gigante que ele sempre tem.

Parada um momento eterno, quando parte de sua história se passa num flashback. Os cachorros todos da vida inteira. A Cocker da família que escapava para seu berço quando ela, a mulher, era um bebê. Um dia ela, a mulher, bebê, mordeu a orelha da cachorra com seus quatro únicos dentes. Histórias contadas, ela mesma não se lembra disso. Lembra da escola, que de repente lhe chega ali naquele sábado ensolarado. Dos velhos amigos. De amores. Do fim, que vem de novo trazendo incredulidade. Estou muito solitário. Estou muito infeliz. O que ele lhe disse outro dia. E foi embora. Um filme. Talvez um Jim Jarmusch em cópia arranhada numa sessão de meia noite no Estação.

A mãe que não está mais aqui a tomaria nos braços naquele momento eterno, falaria vai ficar tudo bem, é o que dizem as mães, era o que dizia a sua. Passaria os dedos por seus cachos, é o que fazem as mães, é o que fazia a sua. Mas a mãe ficou no início do século 21. Igual a paulistinha, que nem ao novo milênio chegou. Ficou. Lá atrás. Com um monte de gente que perdeu no caminho.

E ela, a mulher, levanta. Sai para correr.  Estou muito solitário. Estou muito infeliz. Palavras que ainda vão sumir, vão ser só um arrepio na pele, como as vinhetas de notícias ruins. Ela sabe. E corre. Quer acelerar o tempo.








Nenhum comentário:

Postar um comentário