terça-feira, 15 de setembro de 2015

RENDIÇÃO

Escrevi o texto abaixo em abril, quando a foto da criança síria que se rendeu para um fotógrafo correu o mundo, gerou indignação, comoção, pena. Eu me senti tristíssima com o gesto da menina de quatro anos. Pouco tempo depois, uma nova foto, agora do menino de três anos morto na praia, quando sua família tentava escapar para a Europa. O menino que escorreu das mãos de seu pai, quando tentava a travessia para uma nova vida.

Quantas vezes a gente vê coisas escorrendo das nossas mãos, fugindo ao nosso controle, tomando um rumo que não era o planejado? O que é fazer planos se a gente não tem controle da própria vida?

***

O acampamento de refugiados é um mar de cento e vinte mil barracas brancas  montadas sobre uma terra amarelada coberta por pequenos seixos, cercado de arame farpado. Ao longe a montanha, pontilhada por cedros. À sua volta,  soldados, tanques, blindados e contêineres que servem de abrigo para as agências humanitárias. Uma equipe de reportagem chegou há pouco.

Lá dentro a vida corre numa normalidade impossível de ser concebida numa guerra que já dura quatro anos e não dá nenhum sinal de trégua. As pessoas cozinham, algumas criam galinhas. Lavam suas roupas, as estendem em cordas amarradas entre as barracas. Montam um comércio com a pouca comida que é distribuída. Fazem suas orações diárias. Seguem a vida, até o momento de serem transferidas para outro acampamento. Quem sabe conseguir asilo em algum país. Ou reencontrar algum parente, o que é raro. Voltar para casa é uma esperança que se desfaz no dia-a-dia, mesmo porque não há casa alguma fora daquelas barracas, mal há cidades.

São poucos os homens e muitas as mulheres. Há as jovens, as de meia idade, as idosas, as muito velhas, as encarquilhadas, curvadas, enrugadas. São demais as crianças pequenas e bebês. A maioria já não é filho de ninguém, é o que sobra de famílias, recolhidas pelos soldados nas cidades sitiadas.

No meio de uma das fileiras de barracas, um menino brinca sozinho, no chão, com ossos de animais. Um homem o avista. Usa botas empoeiradas, veste calças cáquis  com bolsos nas pernas, um colete verde. Ele empunha uma coisa que o menino nunca tinha visto. Um cano grosso e grande. Comprido. O menino, distraído em sua imaginação, simula uma corrida de carrinhos que se ultrapassam, batem, capotam. Fala algo como puf, crash, pow, como qualquer garoto faz em toda parte desse planeta, num apartamento com vista para o mar, na Quinta Avenida ou ali, no meio de um acampamento de refugiados sírios.

O homem se aproxima e então menino o vê. Há medo no olhar da criança. O que foi, o homem pergunta, mas o menino não entende a língua nem os gestos.

É um garotinho tão pequeno, de pele um pouco mais escura que a do homem, os cabelos lisos  e escuros com uma franja cobrindo a testa, a bochecha rosada que denuncia que há pouco deixou de ser um bebê crescido. Olham-se olho no olho. Então o homem dá alguns passos adiante em sua direção, já mirando-o pelo visor de seu instrumento.

O menino larga os pequenos ossos.  Emudece. Fica de pé. Morde os lábios. Um filete de sangue escorre por seu queixo.

Quando o homem aponta a câmera e ajusta o foco da teleobjetiva, a poucos metros de seu rosto, o menino levanta os braços, num ato de rendição. Vários cliques são disparados. 

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