Escrevi o texto abaixo em abril, quando a foto da criança síria que se rendeu para um fotógrafo correu o mundo, gerou indignação, comoção, pena. Eu me senti tristíssima com o gesto da menina de quatro anos. Pouco tempo depois, uma nova foto, agora do menino de três anos morto na praia, quando sua família tentava escapar para a Europa. O menino que escorreu das mãos de seu pai, quando tentava a travessia para uma nova vida.
Quantas vezes a gente vê coisas escorrendo das nossas mãos, fugindo ao nosso controle, tomando um rumo que não era o planejado? O que é fazer planos se a gente não tem controle da própria vida?
***
O acampamento de refugiados é um mar de cento e vinte mil
barracas brancas montadas sobre uma
terra amarelada coberta por pequenos seixos, cercado de arame farpado. Ao longe
a montanha, pontilhada por cedros. À sua volta,
soldados, tanques, blindados e contêineres que servem de abrigo para as
agências humanitárias. Uma equipe de reportagem chegou há pouco.
Lá dentro a vida corre numa normalidade impossível de ser
concebida numa guerra que já dura quatro anos e não dá nenhum sinal de trégua.
As pessoas cozinham, algumas criam galinhas. Lavam suas roupas, as estendem em
cordas amarradas entre as barracas. Montam um comércio com a pouca comida que é
distribuída. Fazem suas orações diárias. Seguem a vida, até o momento de serem
transferidas para outro acampamento. Quem sabe conseguir asilo em algum país.
Ou reencontrar algum parente, o que é raro. Voltar para casa é uma esperança
que se desfaz no dia-a-dia, mesmo porque não há casa alguma fora daquelas
barracas, mal há cidades.
São poucos os homens e muitas as mulheres. Há as jovens, as
de meia idade, as idosas, as muito velhas, as encarquilhadas, curvadas,
enrugadas. São demais as crianças pequenas e bebês. A maioria já não é filho de
ninguém, é o que sobra de famílias, recolhidas pelos soldados nas cidades
sitiadas.
No meio de uma das fileiras de barracas, um menino brinca
sozinho, no chão, com ossos de animais. Um homem o avista. Usa botas
empoeiradas, veste calças cáquis com
bolsos nas pernas, um colete verde. Ele empunha uma coisa que o menino nunca
tinha visto. Um cano grosso e grande. Comprido. O menino, distraído em sua
imaginação, simula uma corrida de carrinhos que se ultrapassam, batem, capotam.
Fala algo como puf, crash, pow, como
qualquer garoto faz em toda parte desse planeta, num apartamento com vista para
o mar, na Quinta Avenida ou ali, no meio de um acampamento de refugiados
sírios.
O homem se aproxima e então menino o vê. Há medo no olhar da
criança. O que foi, o homem pergunta, mas o menino não entende a língua nem os
gestos.
É um garotinho tão pequeno, de pele um pouco mais escura que
a do homem, os cabelos lisos e escuros
com uma franja cobrindo a testa, a bochecha rosada que denuncia que há pouco
deixou de ser um bebê crescido. Olham-se olho no olho. Então o homem dá alguns
passos adiante em sua direção, já mirando-o pelo visor de seu instrumento.
O menino larga os pequenos ossos. Emudece. Fica de pé. Morde os lábios. Um
filete de sangue escorre por seu queixo.
Quando o homem aponta a câmera e ajusta o foco da
teleobjetiva, a poucos metros de seu rosto, o menino levanta os braços, num ato
de rendição. Vários cliques são disparados.
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