segunda-feira, 28 de setembro de 2015

ECLIPSE



Era uma menina quando o conheceu. Vinte anos e um amontoado de ingenuidade e esperança. Não imaginava que o mundo se tornaria o que se tornou. Competitivo. Desumano. Invasivo. Efêmero. As relações virtuais que invadem a vida de quem não quer se expor.  As fotos que duram dez segundos e se vão, somem, para mais fotos chegarem, e durarem dez segundos. E sumirem.   

O Rock in Rio faz trinta anos, quase o tempo desse amor, ela pensa. A lua cheia entrará  em eclipse daqui a pouco. Grande, manchada. Escondida pelas nuvens. Chove na cidade uma chuva que há muito não caía.

Lá, naquele passado remoto, aquele em que se conheceram e do qual ela se recorda, reencontra o antigo amor. Lá, ela escrevia com caneta Bic em blocos de papel, ou à máquina, as juras de amor, os poemas melodramáticos, e os dedos se sujavam ao trocar a fita da Olivetti. A Olivetti azul, brilhosa, que ela se arrepende de ter passado adiante quando comprou o primeiro computador, na década seguinte.

Deveria ter guardado, um objeto decorativo, como a Pentax que enfeita a mesa de centro. Analógica, o cheiro do filme sequestrado em sua caixa. Não funciona mais, os botões ganharam um tom esverdeado e fungos tomaram conta da lente. O tempo estraga tudo, ela pensa, para logo em seguida se redimir.

O tempo acalma tudo. E respira aliviada pelo passar do tempo.  A lua antes da chuva, amarela.

Ela caiu de amores por ele aos vinte anos. Ele também, pura delicadeza, diferente dos meninos da idade dela. Na escada do Jardim Botânico, entre palmeiras imperiais, uma aranha pequenina subiu no braço dela e ele retirou, cuidadoso, e aproveitou o pretexto para se chegar mais.  Afundou os dedos no cabelo dela. O beijo.  Inesperado. Suave. O beijo que ela nunca mais esqueceria.

A mesma lua daqui é a daí, a mesma do lugar onde você está, ela pensa. A mesma que estava no céu lá naquele tempo do Jardim Botânico. Na era paleolítica. Quando éramos só unicelulares, quando éramos amebas,  a lua estava lá. Ela sempre esteve. A mesma. Os mesmos.  Onde você está?

Ela nunca esqueceu aquela escada de pedras,  as orquídeas, a alfazema misturada à  umidade. Tinha chovido na véspera do beijo. Agora, enquanto chove, é inundada pelo mesmo cheiro de terra molhada.  

O Rock in Rio acontece sob lama, como da primeira vez. A vida vem em ondas como o mar, Lulu ontem no palco, ela se tomando de amores por aquele amor dos seus vinte anos novamente.

Querido, o que que a gente faz com uma saudade de trinta anos, ela pergunta.


A lua se esconde entre as nuvens pesadas.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

I DIE A LITTLE

Escrevi esse texto em abril, junto com o que postei na semana passada, emocionada com a história da menina síria que se rendeu para um fotógrafo.  A expressão da menina Hudea me deixa muito triste até hoje, cada vez que vejo a foto. Torço para que ela esteja bem, segura, que algum país a tenha acolhido junto com sua família, que tenha a família com ela, que vá à escola, que tenha amigos. Que um dia seja feliz.



Everytime we say goodbye
I die a little
Everytime we say goodbye
I wonder why a little

Foi a primeira música que me lembro de ter escutado na vida, aos cinco anos, num dia que hoje é tão distante de tudo. Não entendi a letra, não falava aquela língua estranha, mal tinha começado a compreender a minha própria. A melodia ficou guardada em algum lugar. Um dia, mais velho, quando já sabia inglês, entendi a letra e me lembrei da voz doce e suave daquela mulher que me deu uma vontade tremenda de chorar. Eu daria a vida para que ela fosse minha mãe e cantasse aquilo para eu dormir,  minha cabeça apoiada em seu colo, ela sussurrando no meu ouvido, baixinho, baixinho, até as pálpebras pesarem.

Ainda sinto os cheiros do começo da minha vida naquele lugar. A galinha sendo cozida numa panela de barro com couve escura, arroz e tomates, o alho a empestear o ar alaranjado de poeira. Os cheiros do suor e do hálito, dos cabelos e dos panos daquela gente toda que havia, que ainda há, são lugares que não se extinguem. Aquelas crianças infinitas, que teimavam em nascer todos os dias naqueles cantos,  como eu nasci num dia qualquer. As mulheres que falavam rápido.  Os voluntários que faziam exames, davam remédios. Os soldados. Esses passavam por lá volta e meia para ver se não tínhamos armas, bombas, pólvora, facões. Não tínhamos nada. Nem família, nem casa, nada. Nem pátria, o que eu nunca soube o que é. Nem dinheiro, que tive que aprender logo o valor. 

Eu brincava no chão.  Um homem, mais claro que eu, o que significava que era estrangeiro, o que significava que podia ser inimigo, chegou perto de mim. Olhei suas botas empoeiradas e levantei a cabeça. O colete com bolsos cheios e de onde saía o fio branco que ele botava no ouvido. Ele empunhava uma coisa que eu nunca tinha visto. Um cano grosso e grande. Parecia pesado. Meu coração virou de cabeça para baixo, meu estômago se encolheu. Lágrimas brotaram nos meus olhos, mas eu controlei para que elas não se derramassem. Homem não chora, as mulheres me ensinaram.  Engoli a dor de garganta que apareceu. Prendi a respiração. 

Fiquei de pé, as pernas tremiam.  Olhei para ele, nunca tinha visto um azul daquele jeito do olho dele, a barba cor de cenoura espetada no queixo. Afastei as pernas. Mordi tão forte os lábios que saiu um fio de sangue. Levantei os braços acima da cabeça, como vi meu pai fazer quando o bando de máscaras pretas chegou lá em casa.

Ele mirou em meu rosto. Olhou por um buraquinho. Mexeu na coisa redonda na frente. Um barulho suave, leve, como se raspassem alguma coisa, tshlic, tshlic, tshlic, quebrou o silêncio. Depois ele afagou minha cabeça, tirou o fio do ouvido e botou no meu. Foi então que ouvi aquela que foi a música mais linda da vida e queria que  fosse a voz da minha mãe que ia me encontrar. E aí ele seguiu adiante no acampamento. 

E eu deixei as lágrimas se derramarem.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

RENDIÇÃO

Escrevi o texto abaixo em abril, quando a foto da criança síria que se rendeu para um fotógrafo correu o mundo, gerou indignação, comoção, pena. Eu me senti tristíssima com o gesto da menina de quatro anos. Pouco tempo depois, uma nova foto, agora do menino de três anos morto na praia, quando sua família tentava escapar para a Europa. O menino que escorreu das mãos de seu pai, quando tentava a travessia para uma nova vida.

Quantas vezes a gente vê coisas escorrendo das nossas mãos, fugindo ao nosso controle, tomando um rumo que não era o planejado? O que é fazer planos se a gente não tem controle da própria vida?

***

O acampamento de refugiados é um mar de cento e vinte mil barracas brancas  montadas sobre uma terra amarelada coberta por pequenos seixos, cercado de arame farpado. Ao longe a montanha, pontilhada por cedros. À sua volta,  soldados, tanques, blindados e contêineres que servem de abrigo para as agências humanitárias. Uma equipe de reportagem chegou há pouco.

Lá dentro a vida corre numa normalidade impossível de ser concebida numa guerra que já dura quatro anos e não dá nenhum sinal de trégua. As pessoas cozinham, algumas criam galinhas. Lavam suas roupas, as estendem em cordas amarradas entre as barracas. Montam um comércio com a pouca comida que é distribuída. Fazem suas orações diárias. Seguem a vida, até o momento de serem transferidas para outro acampamento. Quem sabe conseguir asilo em algum país. Ou reencontrar algum parente, o que é raro. Voltar para casa é uma esperança que se desfaz no dia-a-dia, mesmo porque não há casa alguma fora daquelas barracas, mal há cidades.

São poucos os homens e muitas as mulheres. Há as jovens, as de meia idade, as idosas, as muito velhas, as encarquilhadas, curvadas, enrugadas. São demais as crianças pequenas e bebês. A maioria já não é filho de ninguém, é o que sobra de famílias, recolhidas pelos soldados nas cidades sitiadas.

No meio de uma das fileiras de barracas, um menino brinca sozinho, no chão, com ossos de animais. Um homem o avista. Usa botas empoeiradas, veste calças cáquis  com bolsos nas pernas, um colete verde. Ele empunha uma coisa que o menino nunca tinha visto. Um cano grosso e grande. Comprido. O menino, distraído em sua imaginação, simula uma corrida de carrinhos que se ultrapassam, batem, capotam. Fala algo como puf, crash, pow, como qualquer garoto faz em toda parte desse planeta, num apartamento com vista para o mar, na Quinta Avenida ou ali, no meio de um acampamento de refugiados sírios.

O homem se aproxima e então menino o vê. Há medo no olhar da criança. O que foi, o homem pergunta, mas o menino não entende a língua nem os gestos.

É um garotinho tão pequeno, de pele um pouco mais escura que a do homem, os cabelos lisos  e escuros com uma franja cobrindo a testa, a bochecha rosada que denuncia que há pouco deixou de ser um bebê crescido. Olham-se olho no olho. Então o homem dá alguns passos adiante em sua direção, já mirando-o pelo visor de seu instrumento.

O menino larga os pequenos ossos.  Emudece. Fica de pé. Morde os lábios. Um filete de sangue escorre por seu queixo.

Quando o homem aponta a câmera e ajusta o foco da teleobjetiva, a poucos metros de seu rosto, o menino levanta os braços, num ato de rendição. Vários cliques são disparados. 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

SOLITÁRIO E INFELIZ


Ao abrir, sonolenta, a porta e pegar o jornal,  numa ação repetitiva e automática, uma espécie de máquina do tempo engole a mulher. No vácuo entre a cozinha e o corredor,  ela está de volta aos anos 80. Recessão, grita a manchete. Indicadores negativos arrumados em caixinhas, brilhando de tão vermelhos. Investimentos e construção civil desabam. PIB cai. Greve na Universidade Federal.  

Ela separa os cadernos de cultura e comportamento. O resto nem é lido. Sequer folheado. Os analistas políticos e econômicos a assustam, tanto quanto naquela época em que o dinheiro era tão contado, aplicado no overnight e não valia nada no dia seguinte.

Depois de décadas mergulhada num canto qualquer do esquecimento, a vinheta de notícias urgentes vem à tona. O alarde do tema, que era meio gritado para chamar a atenção, faz o coração dar uns pinotes, ainda hoje, como naquele tempo. Interrompia a programação e trazia uma catástrofe qualquer. A pele da mulher se arrepiava ao ouvir os acordes. A vinheta que emergiu do esquecimento precedia a então poderosa ministra da economia frente às câmeras, cercada de microfones, falando algo como fechar as torneirinhas. E não era crise de abastecimento hídrico, mudança climática, nada era tão sofisticado naqueles anos. Confisco de poupança. Inflação de dois dígitos. Três dígitos.  Sarney. Collor. Ainda.

A vida resolveu lhe esfregar os anos 80 na cara assim, sem mais nem menos, de um dia para o outro.  Que manhã estranha a de sábado, ela pensa. Banhada de sol, como convém aos sábados. Um abafamento fora de época. É inverno. Deslocado no tempo, um dia lá do passado remoto atirado  com um arrebatamento sem sentido.

O cachorro de agora pula em suas pernas, pedindo qualquer coisa, como pulava a paulistinha da adolescência, que ficou com sua mãe enquanto ela, a mulher, fazia  faculdade e estágio. Os vinte e tantos anos os separam, nunca se conheceram, não haveria tempo para isso. O comportamento é o mesmo, o afeto, igual. Carinho e comida, água gelada. Sempre pede alguma coisa esse cachorro de agora. É um insatisfeito. Carente. E se acaso não há o que querer, abana o rabo até a mulher ficar de quatro e beijar seu pescoço.  

A mulher sempre gostou de cachorros. Quando pequena, desenhava um traço vertical e comprido, dois traços menores para as pernas, outros dois menores ainda para os braços, uma bola de cabeça, umas minhoquinhas como cabelo. Rabiscava um cilindro pequeno ao lado de seus pés, completado por quatro tracinhos bem minúsculos servindo de patas e um quinto risco, de rabo. Uma cabeça também cilíndrica, de onde pendiam orelhas triangulares. Um laço os unia, saindo do pescoço imaginário do cão até suas supostas mãos. Ela traça esse auto-retrato de memória enquanto espera o pão esquentar. Daí amassa o papel e joga fora.

A mulher afaga o cachorro, beija seu pescoço.  Corta melão em cubinhos e lhe oferece. E fica parada olhando o bicho engolir os pedaços na fome gigante que ele sempre tem.

Parada um momento eterno, quando parte de sua história se passa num flashback. Os cachorros todos da vida inteira. A Cocker da família que escapava para seu berço quando ela, a mulher, era um bebê. Um dia ela, a mulher, bebê, mordeu a orelha da cachorra com seus quatro únicos dentes. Histórias contadas, ela mesma não se lembra disso. Lembra da escola, que de repente lhe chega ali naquele sábado ensolarado. Dos velhos amigos. De amores. Do fim, que vem de novo trazendo incredulidade. Estou muito solitário. Estou muito infeliz. O que ele lhe disse outro dia. E foi embora. Um filme. Talvez um Jim Jarmusch em cópia arranhada numa sessão de meia noite no Estação.

A mãe que não está mais aqui a tomaria nos braços naquele momento eterno, falaria vai ficar tudo bem, é o que dizem as mães, era o que dizia a sua. Passaria os dedos por seus cachos, é o que fazem as mães, é o que fazia a sua. Mas a mãe ficou no início do século 21. Igual a paulistinha, que nem ao novo milênio chegou. Ficou. Lá atrás. Com um monte de gente que perdeu no caminho.

E ela, a mulher, levanta. Sai para correr.  Estou muito solitário. Estou muito infeliz. Palavras que ainda vão sumir, vão ser só um arrepio na pele, como as vinhetas de notícias ruins. Ela sabe. E corre. Quer acelerar o tempo.