terça-feira, 22 de setembro de 2015

I DIE A LITTLE

Escrevi esse texto em abril, junto com o que postei na semana passada, emocionada com a história da menina síria que se rendeu para um fotógrafo.  A expressão da menina Hudea me deixa muito triste até hoje, cada vez que vejo a foto. Torço para que ela esteja bem, segura, que algum país a tenha acolhido junto com sua família, que tenha a família com ela, que vá à escola, que tenha amigos. Que um dia seja feliz.



Everytime we say goodbye
I die a little
Everytime we say goodbye
I wonder why a little

Foi a primeira música que me lembro de ter escutado na vida, aos cinco anos, num dia que hoje é tão distante de tudo. Não entendi a letra, não falava aquela língua estranha, mal tinha começado a compreender a minha própria. A melodia ficou guardada em algum lugar. Um dia, mais velho, quando já sabia inglês, entendi a letra e me lembrei da voz doce e suave daquela mulher que me deu uma vontade tremenda de chorar. Eu daria a vida para que ela fosse minha mãe e cantasse aquilo para eu dormir,  minha cabeça apoiada em seu colo, ela sussurrando no meu ouvido, baixinho, baixinho, até as pálpebras pesarem.

Ainda sinto os cheiros do começo da minha vida naquele lugar. A galinha sendo cozida numa panela de barro com couve escura, arroz e tomates, o alho a empestear o ar alaranjado de poeira. Os cheiros do suor e do hálito, dos cabelos e dos panos daquela gente toda que havia, que ainda há, são lugares que não se extinguem. Aquelas crianças infinitas, que teimavam em nascer todos os dias naqueles cantos,  como eu nasci num dia qualquer. As mulheres que falavam rápido.  Os voluntários que faziam exames, davam remédios. Os soldados. Esses passavam por lá volta e meia para ver se não tínhamos armas, bombas, pólvora, facões. Não tínhamos nada. Nem família, nem casa, nada. Nem pátria, o que eu nunca soube o que é. Nem dinheiro, que tive que aprender logo o valor. 

Eu brincava no chão.  Um homem, mais claro que eu, o que significava que era estrangeiro, o que significava que podia ser inimigo, chegou perto de mim. Olhei suas botas empoeiradas e levantei a cabeça. O colete com bolsos cheios e de onde saía o fio branco que ele botava no ouvido. Ele empunhava uma coisa que eu nunca tinha visto. Um cano grosso e grande. Parecia pesado. Meu coração virou de cabeça para baixo, meu estômago se encolheu. Lágrimas brotaram nos meus olhos, mas eu controlei para que elas não se derramassem. Homem não chora, as mulheres me ensinaram.  Engoli a dor de garganta que apareceu. Prendi a respiração. 

Fiquei de pé, as pernas tremiam.  Olhei para ele, nunca tinha visto um azul daquele jeito do olho dele, a barba cor de cenoura espetada no queixo. Afastei as pernas. Mordi tão forte os lábios que saiu um fio de sangue. Levantei os braços acima da cabeça, como vi meu pai fazer quando o bando de máscaras pretas chegou lá em casa.

Ele mirou em meu rosto. Olhou por um buraquinho. Mexeu na coisa redonda na frente. Um barulho suave, leve, como se raspassem alguma coisa, tshlic, tshlic, tshlic, quebrou o silêncio. Depois ele afagou minha cabeça, tirou o fio do ouvido e botou no meu. Foi então que ouvi aquela que foi a música mais linda da vida e queria que  fosse a voz da minha mãe que ia me encontrar. E aí ele seguiu adiante no acampamento. 

E eu deixei as lágrimas se derramarem.


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