quarta-feira, 6 de maio de 2015

HILLARY E EU




Hillary Clinton será a candidata democrata à presidência americana, leio,  e lembro que, uns cinco, seis anos atrás, nossas vidas se cruzaram, num breve período de tempo que jamais entrou para a História.

O cenário era Brasília, o gramado estorricado pelo sol causticante em frente à Esplanada dos Ministérios. Os prédios iguais, feiosos, sem graça, com suas vidraças quadradinhas, sonho socialista numa escala desumana. O céu lindo do planalto, cheio de nuvens imagéticas, criava uma abóbada sobre nós, ativistas vestidos de caveira.

Enfiados num macacão preto de poliéster com ossos pintados de branco e uma máscara com aquele sorriso de todos os dentes expostos, os olhos cadavéricos. Um pequeno furo na boca para respirar. Suor escorrendo pela espinha, ensopando a testa e acima dos lábios.

Duzentas cruzes foram espalhadas pelo gramado, simbolizando as mortes provocadas pelo cigarro. Era essa a nossa causa. Nossa organização, que preparava o protesto defronte ao Ministério da Saúde, encomendou balões para chamar a atenção. Não bastavam  cruzes, caveiras, cigarros infláveis de um metro e meio e um carro de som cujos decibéis espantavam qualquer bicho do cerrado. Tinha de haver balões coloridos, gigantescos, enchidos a gás, pesados, a corda grossa presa ao carrinho que os sustentavam para não voarem pelo céu abobadado.

Enquanto organizávamos a ação, num outro lugar qualquer ali perto, talvez o Itamaraty, Hillary Clinton visitava alguma autoridade. Secretária de Estado, a mulher mais poderosa do mundo estava muito incomodada com a aproximação com o Irã, chamado até de nação irmã, ou coisa do tipo, pelo nosso presidente.

Um vento planaltino, prenúncio de uma chuva rara para a capital, começou a varrer o nosso cenário. Cruzes voaram, cartazes caíram no espelho d’agua. Eu corri para segurar os balões, como se minha missão na Terra fosse protegê-los. O homem que os enchia, insensato, entregou um deles para mim.  Amarrava os recém-enchidos ao carrinho apressadamente, a experiência de anos labutando no setor baloeiro. Aquele diâmetro de uma imensidão abusiva. Que ingênua fui ao segurar aquele balão vermelho. O vento era tão forte que quase arrancou meu braço, levantado totalmente acima de minha cabeça pela fluidez daquela bola imensa de gás que queria ganhar os céus de Brasília.

Deixei cair a cruz que segurava, agarrei o grosso cordão com as duas mãos e senti que levantava voo, saía um pouquinho do chão. Era o que faltava, eu, vestida de caveira e tudo o mais, ter o mesmo destino daquele padre louco que se perdeu por aí agarrado a balões.

De repente, uma sirene alta, mais alta ainda que os decibéis do nosso protesto. Carros pretos com batedores em motos, bandeirinhas americanas nos retrovisores, policiais armados e bem vestidos. No carro do meio, o vidro preto se abriu.

Naquele instante de tempo em que ventava, em que cartazes mergulhavam no lago, em que pássaros faziam uma revoada em busca de abrigo, em que as nuvens se fechavam em tormenta, em que eu voava um pouquinho acima do chão estorricado, naquele instante Hillary Clinton olhou através da janela. Expôs seu sorriso branco e seus cabelos louros, milimetricamente penteados. E acenou.

Segurei o balão só com a mão esquerda, com a direita acenei de volta para a mulher mais poderosa do mundo. Eu, igual a uma Mary Poppins, e vestida de caveira,

A comitiva passou. O vento se foi também. O protesto seguiu adiante. Depois choveu e o gramado ficou com um cheiro delicioso de mato molhado.


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