Hillary
Clinton será a candidata democrata à presidência americana, leio, e lembro que, uns cinco, seis anos atrás,
nossas vidas se cruzaram, num breve período de tempo que jamais entrou para a História.
O
cenário era Brasília, o gramado estorricado pelo sol causticante em frente à
Esplanada dos Ministérios. Os prédios iguais, feiosos, sem graça, com suas
vidraças quadradinhas, sonho socialista numa escala desumana. O céu lindo do
planalto, cheio de nuvens imagéticas, criava uma abóbada sobre nós, ativistas
vestidos de caveira.
Enfiados
num macacão preto de poliéster com ossos pintados de branco e uma máscara com
aquele sorriso de todos os dentes expostos, os olhos cadavéricos. Um pequeno
furo na boca para respirar. Suor escorrendo pela espinha, ensopando a testa e acima
dos lábios.
Duzentas
cruzes foram espalhadas pelo gramado, simbolizando as mortes provocadas pelo
cigarro. Era essa a nossa causa. Nossa organização, que preparava o protesto defronte
ao Ministério da Saúde, encomendou balões para chamar a atenção. Não bastavam cruzes, caveiras, cigarros infláveis de um
metro e meio e um carro de som cujos decibéis espantavam qualquer bicho do
cerrado. Tinha de haver balões coloridos, gigantescos, enchidos a gás, pesados,
a corda grossa presa ao carrinho que os sustentavam para não voarem pelo céu
abobadado.
Enquanto
organizávamos a ação, num outro lugar qualquer ali perto, talvez o Itamaraty, Hillary
Clinton visitava alguma autoridade. Secretária de Estado, a mulher mais
poderosa do mundo estava muito incomodada com a aproximação com o Irã, chamado até
de nação irmã, ou coisa do tipo, pelo nosso presidente.
Um
vento planaltino, prenúncio de uma chuva rara para a capital, começou a varrer
o nosso cenário. Cruzes voaram, cartazes caíram no espelho d’agua. Eu corri
para segurar os balões, como se minha missão na Terra fosse protegê-los. O
homem que os enchia, insensato, entregou um deles para mim. Amarrava os recém-enchidos ao carrinho
apressadamente, a experiência de anos labutando no setor baloeiro. Aquele
diâmetro de uma imensidão abusiva. Que ingênua fui ao segurar aquele balão
vermelho. O vento era tão forte que quase arrancou meu braço, levantado
totalmente acima de minha cabeça pela fluidez daquela bola imensa de gás que
queria ganhar os céus de Brasília.
Deixei
cair a cruz que segurava, agarrei o grosso cordão com as duas mãos e senti que
levantava voo, saía um pouquinho do chão. Era o que faltava, eu, vestida de
caveira e tudo o mais, ter o mesmo destino daquele padre louco que se perdeu
por aí agarrado a balões.
De
repente, uma sirene alta, mais alta ainda que os decibéis do nosso protesto. Carros
pretos com batedores em motos, bandeirinhas americanas nos retrovisores, policiais
armados e bem vestidos. No carro do meio, o vidro preto se abriu.
Naquele
instante de tempo em que ventava, em que cartazes mergulhavam no lago, em que
pássaros faziam uma revoada em busca de abrigo, em que as nuvens se fechavam em
tormenta, em que eu voava um pouquinho acima do chão estorricado, naquele
instante Hillary Clinton olhou através da janela. Expôs seu sorriso branco e
seus cabelos louros, milimetricamente penteados. E acenou.
Segurei
o balão só com a mão esquerda, com a direita acenei de volta para a mulher mais
poderosa do mundo. Eu, igual a uma Mary Poppins, e vestida de caveira,
A
comitiva passou. O vento se foi também. O protesto seguiu adiante. Depois
choveu e o gramado ficou com um cheiro delicioso de mato molhado.