terça-feira, 6 de setembro de 2016

FIO DA MEADA



Querido,

Insisto no adjetivo.  Meu problema é ser repetitiva. E insistente, você acha.

Aquela foi a maior árvore que já vi. Na semana passada. Te falei dela. Parecia deslocada naquele cenário plano sem montanhas, naquela aridez de plantas que nascem rasteiras ao chão seco e avermelhado. Ficava num canto, a sombra espalhada pelo jardim inteiro.

Eu me deitei no gramado, sob a sombra, as mãos fechadas em concha por trás da cabeça. Observei as folhas verdes escuras, bem nutridas, parrudas. Os troncos como tecidos num fio. Grossas fibras que se misturavam, retorcidas há centenas de anos, e se tornavam uma só.

Meia lua perdida no azul, a recusa a se recolher, embora o sol despontasse no lado oposto. Nada de nuvens. O céu de uma violência despudorada a tirar o fôlego de quem ousasse olhar para cima, admirá-lo. Aquela cidade tem disso: um céu que vou te contar.

A grama com resquícios da madrugada. Eu tinha acabado de andar até o lago, descalcei os tênis e senti os pés pisando o chão, os pedregulhos machucando.  E então deitei sob a árvore gigante. A umidade atravessou a camiseta.  O cheiro da árvore, do orvalho aos poucos evaporando. Um vento calmo. Talvez eu chamasse aquele instante de paz.

São raros esses momentos, Querido, acredita em mim. São raros na vida inteira, se você quer saber. Agora dor na pele, arrepios, suor, amargo na base da língua.  Desassossego.

Te contei da árvore. Falei da sensação de aspereza do tronco na minha mão, do cheiro de musgo que senti. Seria um sonho ter você ali, admirado com os galhos fortes, com o verde das folhas, com os frutos marrons que se desprendiam e sujavam o gramado no entorno das raízes. Queria que olhasse o céu que nos acolhia. A ausência de nuvens. O céu que nos acolheria, o futuro que não vai acontecer.

Penso em você em todos os lugares onde eu vejo beleza, te falei disso, Querido. Lembro daquele filme em que o cara apaga a memória para não sofrer a perda e termina se apaixonando pela mesma moça que lhe causou tanta dor. Preciso reprogramar meu cérebro. Acostumei a te mandar fotos, as coisas belas eternizadas, essa mania. O bondinho pendurado entre os dois morros e uma orquídea em primeiro plano brotando num poste. Lembra? O feijão de Chicago e minha imagem distorcida. A floresta ao entardecer em riscos alaranjados. O cisne do jardim onde fomos e o reflexo do palácio na água do lago. O pavão que atravessou a varanda e se expôs, todo admirável.

No dia em que deitei sob a árvore, vi insetos passearem pelos veios. Aranha tecendo teia, os fios iluminados pelo raio de sol que atravessava a copa. Formigas carregando pequenos grãos. Fechei os olhos, pensei no universo, no quadro da sala, na explosão dos amarelos. Na sorte de ter te encontrado depois de tudo, de tanto tempo. E então, em casa, te abracei. A suavidade dos seus  cabelos quando passei os dedos na sua nuca e disse que saudade, e te beijei.  A sua alfazema.

O que que a gente faz com um sentimento de quase trinta anos, eu te perguntei. Gosto de você só um poço, um pocinho, um porquinho, um potinho, um danoninho, um bifinho. Uma bobagem, o poeminha bobo. O começo.

Preciso entender onde perdi o fio da meada.






Nenhum comentário:

Postar um comentário