quarta-feira, 14 de setembro de 2016

OUTRO DIA MESMO



...

Agora vou até o mar. O cachorro não sossega, corre, o tamanho tão pequeno das patas  dificulta o movimento quando o terreno não é sólido. Mas ele gosta, fuça, cava buracos. É como eu, sente os cheiros, a areia fria e úmida. Gosto das pegadas. Os pezinhos afundados. Queria tatuar no ombro. Um dia.

Deixo a onda vir, molhar as canelas, inundar o bicho. 

Falta um tanto assim para a lua ficar bem redonda, está quase. Um certo véu em torno dela, não diria que é neblina. Neblina acontece com trinta e oito graus? É a marca  do termômetro espetado naquele quarteirão. Apesar do horário. Um veranico de repente, outro dia mesmo estava fresco. Outro dia mesmo você aqui. 

Antes, muito antes, atravessei aquela rua onde sempre te encontrava. Foi por acaso, quando reparei estava ali, naquela rua. O letreiro do bar vagabundo anunciando a cerveja, aquele ponto de encontro no meio do concreto quente, aquele vermelho do cartaz, as letras brancas. Uns sujeitos bebendo na calçada, marca de suor embaixo do braço, a comida engordurada no balcão, os copos de geleia, o cheiro azedo de cerveja quente e fritura velha. Te disse que sou como o cachorro, farejo.

E no entanto aquilo tudo. Aquela rua, meu carro parado, você entrava, me beijava, passava o cinto de segurança no peito. E seguíamos. Eu sempre segurava a sua mão e dava um beijo, como a pedir uma espécie de bênção. Seria? A mão macia, grande, que segurava a minha perna, gosto da sua coxa, você dizia enquanto sentia meu músculo, gosto da sua mão. Agora não, a dorzinha de engolir o choro  presa na garganta. Eu ando meio rouca, sabe?

O que eu queria era voltar no tempo,  só um pouquinho, um outro dia, e te encontrar ali, naquele pedaço de mundo, resgatar você, te trazer ao mar, um mergulho.  

E não, na vida real o tempo anda para a frente, é você quem retorna para um ponto no início, quer parar o tempo como se fosse possível, parar o tempo para entender tudo. Tudo o que? As respostas confusas. Não me dou bem com respostas confusas, elas se perdem  sem saber para onde ir, as respostas.  

Na vida real, da qual a gente não se esconde - e é esse seu erro, pensar que dá para se esconder, camuflar, se distrair -  na rua do bar do letreiro vermelho, o  sol queimou a pele, a roupa empapou, o sapato cismou em roçar o pé, a falta de band-aid. A dorzinha quase.

E agora a espuma do mar, os prédios lá longe, as luzes pontilhadas. Os carros. Faróis acesos. Bicicletas. Outros cachorros. Pombos.  A lua quase.

Antes, naquele ponto em frente ao bar, um pouco depois do posto de gasolina, a calçada fez uma curva. Nunca tinha reparado na curva. Não importa, o que eu reparo não conta. E então, escondido entre postes, um emaranhado de fios e uma amendoeira, o Cristo. Lá no alto, pairando, despercebido.  Aí, naquele ponto, a dorzinha passou.

A foto. O choro. O sol.

Agora não. O véu da lua. Vento nenhum. Os trinta e oito graus. O cachorro cansado. Língua de fora. A espuma branca. Uma espiga de milho para matar a fome. O mergulho. A dorzinha ressurge na garganta. A lua quase.








Nenhum comentário:

Postar um comentário