quarta-feira, 30 de março de 2016

PARAR DE MORRER



Mudou a estação.

Já era para ter folhas amareladas caindo nas ruas, mas ainda faz muito calor e as árvores estão verdíssimas, florescendo, em festa. As pessoas vão e voltam da praia, os pés de areia, a nova coleção de biquínis na vitrine, os bares cheios. Aqui as estações não obedecem nenhum calendário.  Agora chove. Uns pingos grossos, escassos, que só molham o chão. Aumentam a umidade. Meu cabelo fica péssimo com a umidade. Nesse ponto, viver em Brasília me faria me sentir mais bonita. Em Brasília, nessa hora, os ratos abandonam o navio.

Existe um verão eterno aqui dentro. O sol invade as janelas, atravessa as cortinas, se derrama nos móveis, faz da sala uma estufa que mata as flores. Matou as que você me mandou. Acordei e vi as rosas com as cabeças abaixadas, desistindo de existir. E chorei. Eu queria essas rosas para o resto da vida. Guardei as pétalas dentro do livro que você me deu há tantos anos e que eu carreguei como uma relíquia a cada mudança.

Te mostrei aquela página com a ponta dobrada. Era o poema que você gostava e que, todos os anos, eu relia no dia do meu aniversário, como um ritual, e me lembrava de você. Aquela ponta dobrada pelos seus dedos. As pétalas estão lá, naquela dobra que é você e que eu olhava, alisava, me lembrava do Jardim Botânico e do seu beijo.  Saber que você é real e não a minha imaginação me traz um encantamento tremendo. É uma das vitórias que trago na vida, pareço copiar letra do Roberto Carlos, mas é isso.  E então toco aquela dobra, sinto a pétala perdendo o viço, virando um pedaço de papel para pertencer àquela página, numa espécie de simbiose. E choro de novo. Eu já te disse: sou toda coração. E ao mesmo tempo você me vê tão dura.  

Esse verão eterno aqui dentro me faz puxar o ar com uma força  que eu não tenho e me dispara o coração. Eu fico coberta de suor. Não sei se transpiro ou se é a tal da angústia com tanta novidade, com essa mistura de sensações que não sou capaz de  descrever. E aí eu entro em pane, como a máquina de lavar que acende uns botõezinhos vermelhos quando muito cheia. Das machine kaput, a única frase que eu sei em alemão me cai bem nessa hora.

Então respiro fundo, lembro dos mantras de meditação, engulo o choro, o medo, a fraqueza e penso que tudo vai melhorar com o ventilador, que vai melhorar com o ar condicionado que um dia vou comprar.  Que vai melhorar com o passar dos dias. Que vai melhorar quando o outono, enfim, entrar.

Que vai melhorar quando você chegar.

Fui até o mar. Senti a água molhar os pés, a areia entre os dedos. Fui à noite, uma brisa fresca, algumas estrelas. É tanta luz que não se vê o céu. O cheiro da maresia me trouxe um pouco de calma, uma coisa que eu não sei se posso chamar de paz. Ainda. Eu gosto do cheiro de maresia e de mato da serra. Eu sou um pouco disso tudo, a montanha e o mar aqui dentro de mim, como o verão que não vai embora.

Eu não sinto saudade da outra vida, a que acabou, a que ficou nas fotos que guardei e não sei se quero tirar das caixas. A pedra na varanda, o gigante deitado, a lagoa de água parada, aquela paisagem escancaradamente bonita e de certa forma triste porque   triste era eu quando a olhava. Aquilo tudo que ficou no caminho. Aquela que eu fui não existe mais. Aquela é tão diferente de mim.       

Eu vivi morrendo a cada dia por uns dez anos. Agora parei de morrer e parar de morrer assusta um bocado.  É o que sou: medrosa, bancando a forte.  Querendo um abraço. Me dá um abraço, vem.

Aqui, nessa casa do verão eterno, eu colo os pedacinhos do que eu fui. Parar de morrer é dolorido. Tem um preço, e não é só aquele que aparece no extrato do banco. Parece que o caco que eu pego vai cortando a pele, para depois formar uma cicatriz, a casquinha cair, ou ser arrancada. Eu tenho a mania de arrancar as cascas das feridas e elas sangram de novo, formam nova casquinha.

Escuto uma balada pop, pago tevê a cabo com canais de filmes mas gosto mesmo é de ouvir música no canal 300.  Entra uma brisa muito leve, que nem chega a balançar a cortina. O verão permanece aqui dentro. A chuva não o abrandou. Nem um pouco. O cachorro dorme ao meu lado no sofá, exausto de mais um dia estranho.

Admiro os móveis meio que se encolhendo para manter o vínculo comigo. A cozinha apertada que ainda me atrapalha. Um aconchego vem dos quartos, daquele canto da estante e poltrona.

Há algo de assombro com a nova vida. Um maravilhar-se.

Parar de morrer é muito esquisito.








Um comentário:

  1. Belo texto, Anna! Me lembrou um dito oriental: "O que a lagarta chama de fim de mundom o mestre chama de borboleta". Don't stop the flow. Good luck.

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