Eu não
gosto de queimar meus navios. Entenda isso: eu não queimo meus navios.
São eles,
os navios, que se incendeiam. Desço
deles meio sem saber para onde ir. O ar além da pretidão toda da fumaça. O
horizonte que mal se enxerga. Braçadas até morrer na areia. Às vezes não tem
jeito. A gente morre.
Pedras
adiante. Enormes. Montanhas inteiras. Pedaços de iceberg, a boca do vulcão, o
meteorito que bateu na Terra, as crateras que levam ao purgatório. Depende do ponto de vista. Mas uma coisa eu digo: não há uma única flor.
Nunca é
de repente. Nada é de repente. Não resolvo queimar meus navios assim, de uma
hora para a outra, como você supõe. Não é um estalar de dedo, uma explosão e
faz-se. Ou você acha que foi assim com o
universo? Uma molécula, átomos e pá, o big bang? Você me fita, mira meu rosto,
faz um movimento com a cabeça de um lado para o outro, o tempo em você é mais
vagaroso, você chupa o lábio inferior,
você não sabe o que dizer. O olhar caído atrás dos óculos. Você quer me fazer
acreditar numa certa paz, e há, eu te pergunto. A paz.
A
combustão pode vir de uma fagulha mal apagada que insiste em ter vida
própria. Aquela centelha se espalha.
Você usa o abafador, envolve com mantas, engole todo o oxigênio possível para
não propagar mais o fogo. Daí se dá por satisfeito porque controlou as
chamas. Você pensa que controlou. Você
prefere se enganar. E acha que seus navios vão sobrar intactos, flutuando em
águas plácidas.
Noutro
dia eu dei fim à aliança. Foi assim: botei na caixinha, enfiei na bolsa, atravessei a rua, entrei na loja e perguntei
à moça, quanto vale. Em troca, vou me
dar um anel bonito. Queria uma viagem, voltar a todos os lugares onde já fui, visitar os mesmos parques, os mesmos museus,
sentar nos mesmos cafés, olhar o movimento, sabe? talvez me ver naquele
movimento, naquela rua, naqueles tempos, eu tão antes de ser o que sou, ainda
sem muitos navios queimados. Mas a
viagem custa um bocado, a crise, o
dólar, o euro, o resumo da ópera. Um anel bonito, vou me dar por satisfeita, pensei nisso no
fim de tudo, daqueles tempos. No anel.
Você não
sabe, claro que não sabe, o que foi guardar a aliança na caixinha, a caixinha na bolsa, as lembranças. A loja
elegante, a moça bem vestida, os números num papel. Asséptico, frio, apesar do
sol lá fora. E fazer de conta que era um gesto simples, entregar a caixinha com a aliança, quanto
vale, que meus olhos não ficaram embaçados. Como o apagar das fotos de casal
naquela tarde, apertar a tecla delete e pôr fim a anos de história, lembranças
de rostos juntos, de sorrisos. Até agora já perdi meio átrio, um terço de um
ventrículo e umas válvulas, vamos dizer assim, para não deixar de fazer um
certo drama. O desamparo dos que queimam navios é esse.
A aliança
ficou tanto tempo no meu dedo que criou uma marca esbranquiçada naquele pedaço
que não pegava sol. Aquele pedaço que não pegava sol se moldou à esfera como se
fosse parte da pele, chegou a ter uma leve curva para se ajustar. Eram todos,
dedo e anel, uma coisa só. Me pego rodando a aliança, que não existe mais, com
o polegar, o gesto banal para distrair.
Dentro
daquele aro grosso de metal tinha um
nome e uma data gravados em letra de mão. E toda uma história. Que se perdeu.
Aquela data é hoje. O ano em que não se completará. E aí é mais um pedaço, meio
átrio.
Bodas de
cretone e eu nem fazia ideia que existia cretone nesse mundo, você sabia? Substantivo
masculino singular. Pano forte e encorpado, de algodão ou de linho,
usado, não só branqueado, principalmente para lençóis e fronhas, como também
estampado, comumente para cortinados, reposteiros e móveis estofados. Olha
só o que eu ando aprendendo. Com rimas e tudo, rimas pobres, fracas, não
importa. E não sei o que é reposteiro. Também não vou procurar.
Escapei
das bodas de cretone, o fato é esse. E não completar o cretone é um fracasso,
você não tem ideia. Provoca uma onda
aqui dentro capaz de derrubar meus navios. E aí, sim, eles se queimam. Quase o
inferno. A data chega, uma hora chega, eu é que fiquei para trás numa linha do
tempo onde há o dia em que a aliança se foi.
Um pouco
antes foi o rasgar de papéis. Foi juntar tudo em caixas, passar a fita adesiva
e enfiar num caminhão de mudança. Foram
os cartões com versos guardados numa pasta de plástico entocadas numa gaveta. Ainda
vou reler. Um dia. Houve a época da troca dos porta retratos. De ler
declarações sobre a eternidade e de se espantar que já tenham havido risos e beijos e aquilo que alguns
chamam ternura. Há meses foram as malas enfileiradas no corredor. A porta do
elevador se fechando. Às vésperas, foi o acordar sozinha.
O choro
disfarçado enquanto levo o cachorro para o passeio. As ruas daqui têm tantas árvores, canteiros e
vasos, às vezes mal passo pela calçada e tenho que buscar o meio fio. Atenção
com os carros. Os galhos baixos que quase tocam minha cabeça. Meu cabelo fica
cheio de folhinhas amarelas que se entranham aos fios, e em casa, eu retiro,
diante do espelho. Lembro da macaca catando piolho no filhote num programa de
tevê, aquela delicadeza, ela vasculha o pelo, segura o inseto, olha, se
assegura que o bicho está ali nas unhas, o esmaga, e afaga a cabeça do menino.
Ou menina, não sei. As raízes rasgam as pedras portuguesas. O esgoto vazou e um
caminhão com uma mangueira suga o
líquido mas não disfarça a contaminação do ar. O motor barulhento. Os porteiros
na calçada, a hora do cigarro, o papo furado. Bom dia, me cumprimentam.
Respondo baixinho, um meneio da cabeça, olho o bico do meu tênis buscando não
tropeçar num pedregulho. Disfarço à toa, ninguém quer saber de lágrimas, de
lábios trêmulos. Ninguém percebe um coração um pouco acelerado. A dor de
garganta. Todos enfiados em suas vidas tão cheias de incêndios.
Cada um
queima seu navio. Você é que insiste em não pôr fogo nos seus. Você pensa que controlou
as chamas. Você prefere se enganar. E acha que seus navios vão sobrar intactos,
flutuando em águas plácidas.
Novos navios virão, com novas esperanças de levar a um porto seguro. Mas será seguro porque fazemos ele seguro cada dia!!
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