sexta-feira, 6 de maio de 2016

BATALHA NAVAL




Eu não gosto de queimar meus navios. Entenda isso: eu não queimo meus navios.

São eles, os  navios, que se incendeiam. Desço deles meio sem saber para onde ir. O ar além da pretidão toda da fumaça. O horizonte que mal se enxerga. Braçadas até morrer na areia. Às vezes não tem jeito. A gente morre.

Pedras adiante. Enormes. Montanhas inteiras. Pedaços de iceberg, a boca do vulcão, o meteorito que bateu na Terra, as crateras que levam ao purgatório.  Depende do ponto de vista.  Mas uma coisa eu digo: não há uma única flor.

Nunca é de repente. Nada é de repente. Não resolvo queimar meus navios assim, de uma hora para a outra, como você supõe. Não é um estalar de dedo, uma explosão e faz-se.  Ou você acha que foi assim com o universo? Uma molécula, átomos e pá, o big bang? Você me fita, mira meu rosto, faz um movimento com a cabeça de um lado para o outro, o tempo em você é mais vagaroso,  você chupa o lábio inferior, você não sabe o que dizer. O olhar caído atrás dos óculos. Você quer me fazer acreditar numa certa paz, e há, eu te pergunto. A paz.

A combustão pode vir de uma fagulha mal apagada que insiste em ter vida própria.  Aquela centelha se espalha. Você usa o abafador, envolve com mantas, engole todo o oxigênio possível para não propagar mais o fogo. Daí se dá por satisfeito porque controlou as chamas.  Você pensa que controlou. Você prefere se enganar. E acha que seus navios vão sobrar intactos, flutuando em águas plácidas.

Noutro dia eu dei fim à aliança. Foi assim: botei na caixinha, enfiei na bolsa,  atravessei a rua, entrei na loja e perguntei à moça, quanto vale.  Em troca, vou me dar um anel bonito. Queria uma viagem, voltar a todos os lugares onde já fui,  visitar os mesmos parques, os mesmos museus, sentar nos mesmos cafés, olhar o movimento, sabe? talvez me ver naquele movimento, naquela rua, naqueles tempos, eu tão antes de ser o que sou, ainda sem muitos navios queimados.  Mas a viagem custa um bocado,  a crise, o dólar, o euro, o resumo da ópera. Um anel bonito,  vou me dar por satisfeita, pensei nisso no fim de tudo, daqueles tempos. No anel.    

Você não sabe, claro que não sabe, o que foi guardar a aliança na caixinha,  a caixinha na bolsa, as lembranças. A loja elegante, a moça bem vestida, os números num papel. Asséptico, frio, apesar do sol lá fora. E fazer de conta que era um gesto simples,  entregar a caixinha com a aliança, quanto vale, que meus olhos não ficaram embaçados. Como o apagar das fotos de casal naquela tarde, apertar a tecla delete e pôr fim a anos de história, lembranças de rostos juntos, de sorrisos. Até agora já perdi meio átrio, um terço de um ventrículo e umas válvulas, vamos dizer assim, para não deixar de fazer um certo drama. O desamparo dos que queimam navios é esse.

A aliança ficou tanto tempo no meu dedo que criou uma marca esbranquiçada naquele pedaço que não pegava sol. Aquele pedaço que não pegava sol se moldou à esfera como se fosse parte da pele, chegou a ter uma leve curva para se ajustar. Eram todos, dedo e anel, uma coisa só. Me pego rodando a aliança, que não existe mais, com o polegar, o gesto banal para distrair.   

Dentro daquele aro grosso de metal  tinha um nome e uma data gravados em letra de mão. E toda uma história. Que se perdeu. Aquela data é hoje. O ano em que não se completará. E aí é mais um pedaço, meio átrio. 

Bodas de cretone e eu nem fazia ideia que existia cretone nesse mundo, você sabia? Substantivo masculino singular. Pano forte e encorpado, de algodão ou de linho, usado, não só branqueado, principalmente para lençóis e fronhas, como também estampado, comumente para cortinados, reposteiros e móveis estofados. Olha só o que eu ando aprendendo. Com rimas e tudo, rimas pobres, fracas, não importa. E não sei o que é reposteiro. Também não vou procurar.  

Escapei das bodas de cretone, o fato é esse. E não completar o cretone é um fracasso, você não tem ideia.  Provoca uma onda aqui dentro capaz de derrubar meus navios. E aí, sim, eles se queimam. Quase o inferno. A data chega, uma hora chega, eu é que fiquei para trás numa linha do tempo onde há o dia em que a aliança se foi.

Um pouco antes foi o rasgar de papéis. Foi juntar tudo em caixas, passar a fita adesiva e enfiar num caminhão de mudança.  Foram os cartões com versos guardados numa pasta de plástico entocadas numa gaveta. Ainda vou reler. Um dia. Houve a época da troca dos porta retratos. De ler declarações sobre a eternidade e de se espantar que já tenham  havido risos e beijos e aquilo que alguns chamam ternura. Há meses foram as malas enfileiradas no corredor. A porta do elevador se fechando. Às vésperas, foi o acordar sozinha.

O choro disfarçado enquanto levo o cachorro para o passeio.  As ruas daqui têm tantas árvores, canteiros e vasos, às vezes mal passo pela calçada e tenho que buscar o meio fio. Atenção com os carros. Os galhos baixos que quase tocam minha cabeça. Meu cabelo fica cheio de folhinhas amarelas que se entranham aos fios, e em casa, eu retiro, diante do espelho. Lembro da macaca catando piolho no filhote num programa de tevê, aquela delicadeza, ela vasculha o pelo, segura o inseto, olha, se assegura que o bicho está ali nas unhas, o esmaga, e afaga a cabeça do menino. Ou menina, não sei. As raízes rasgam as pedras portuguesas. O esgoto vazou e um caminhão com uma mangueira  suga o líquido mas não disfarça a contaminação do ar. O motor barulhento. Os porteiros na calçada, a hora do cigarro, o papo furado. Bom dia, me cumprimentam. Respondo baixinho, um meneio da cabeça, olho o bico do meu tênis buscando não tropeçar num pedregulho. Disfarço à toa, ninguém quer saber de lágrimas, de lábios trêmulos. Ninguém percebe um coração um pouco acelerado. A dor de garganta. Todos enfiados em suas vidas tão cheias de incêndios.

Cada um queima seu navio. Você é que insiste em não pôr fogo nos seus. Você pensa que controlou as chamas. Você prefere se enganar. E acha que seus navios vão sobrar intactos, flutuando em águas plácidas.





Um comentário:

  1. Novos navios virão, com novas esperanças de levar a um porto seguro. Mas será seguro porque fazemos ele seguro cada dia!!

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