quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

AH, ROSA

Pedra da Gávea vista da varanda da minha casa

Este texto foi publicado em 2 de fevereiro no site Confraria dos Trouxas. Tinha que ser criado em cima da música Gostava Tanto de Você, do Tim Maia. Segue o link para a versão original: http://confrariadostrouxas.com.br/2016/02/ah-rosa.html


O urubu abriu as asas e levantou voo a centímetros do para-brisa.   Majestático, atlético, atravessou a pista, ganhou a areia e o mar, seu traço misturado ao das ilhas do fundo da Prainha. 

Observei o rabisco dele rumo ao horizonte. Uma banda tocava marchinhas. O carro parado esperando a turba passar. Pela primeira vez eu não estava no bloco. Cospe Amor.  O bloco que a Rosa gostava.  

O urubu é a única ave que plana perfeitamente, Da Vinci chegou a estudar esses bichos para preparar o projeto de avião, disse à mulher que estava ao meu lado no carro, mostrando o fascínio por aquela ave de cabeça raspada. Ela deixou escapar um suspiro, não sei dizer se de lamento ou satisfação.  Era a primeira vez que eu saía com ela. 

Quem gostava de urubus era a Rosa, era ela quem se deleitava com a minha sabedoria. Vasta sabedoria sobre o nada, ela brincava. Essa mulher ao meu lado é difícil de impressionar, eu tinha que ter envergadura maior, ser mais sagaz. Ela ficou calada no almoço, parecia uma analista, eu contando a minha vida e ela monossilábica. Eu sei que atropelo, falo demais. A Rosa me instigava o tempo todo, fiquei mal acostumado. E voltando pela praia da Barra, me esforçava para ter assunto e ela nos hum huns, han hans. 

De repente puxei um quem será que vai ser a campeã esse ano, tomara que seja a  Mocidade, é o melhor samba, ainda dei uma risadinha. O silêncio é tão estranho quanto dois desconhecidos num carro. Com a Rosa, eu conversava sobre tudo, o pensamento começava aqui no urubu e ia para o formato da nuvem, o filme em cartaz, o livro tal, o efeito borboleta.

Depois que a Rosa foi embora, assim, sem mais nem menos,  eu precisava conhecer gente nova.  Nunca entendi porque ela se foi, cheguei em casa e vi o bilhete, o armário sem as roupas dela, as gavetas vazias.  Nem dei adeus. E aí, depois de tudo, das plantas que secaram porque eu não reguei, agora eu precisava conhecer gente nova.

Aquela mulher ao meu lado veio de um aplicativo de encontros, mensagens trocadas e o convite para um almoço no domingo de carnaval. Ela não gostava de carnaval, eu menti que também não. E fomos. A vida real é tão diferente da virtual. Apertar coraçõezinhos, gostar, fazer comentários bobos é fácil, complicado é quando a fulana senta ao seu lado no carro e começa um novo jogo. 

E no caminho para casa, a casa dela, é claro, a muralha da China entre nós dois. Que eu não percorreria, eu sabia que não.

A tarde se coloriu de azuis e laranjas atrás da Pedra da Gávea,  os blocos do lado de lá, a Rosa talvez no Cospe Amor, não sei.  A pista livre assim que a turba atravessou.  O vento esvoaçando os cabelos daquela mulher feito um comercial de xampu e me trazendo saudade dos cabelos da Rosa. Do cheiro de gel com purpurina e maresia que me dava vontade de enfiar o nariz, desmanchar o penteado e sentir os fios nos meus dedos. A Rosa entranhada em cada furinho da minha pele, a lavanda de bebê borrifada depois do banho, o talco. Os olhos da Rosa, pequeninos, meio caidinhos, o jeito de índia, o retrato na minha cabeceira. Ainda, meu deus do céu. Ainda. A Rosa me chamando, ampliada, emoldurada, em preto e branco. Agora a parede amarelando em volta daquele sorriso largo e eu parado no passado, um medo do futuro. A solidão em minha porta.

A língua dela, da mulher ao meu lado,  de vez em quando percorria os lábios, um tique nervoso talvez, ela meio que mordia a boca. A Rosa me mordia a boca, puxava meus lábios com os dentes, devagarzinho, um arrepio que me subia.  

A Rosa me convidou para ir ao apartamento logo no primeiro dia, depois do Cospe Amor. Nós com confete grudado em nosso corpo. Preparou uma caipirinha.  Esmagou o limão, jogou cachaça, açúcar, quebrou as pedrinhas de gelo, sacudiu numa coqueteleira, os peitos balançaram juntos, eu disfarçando o olhar, os bibelôs na estante, e pegou dois copos no armário, me entregou um, falou tim tim, sorriu o sorriso grande do retrato e me deu um beijo. E mordeu a minha boca. E depois tirou a fantasia para mim.  

Chegamos, a mulher ao meu lado disse, animada. A primeira animação do dia. Tchau, e encostou a bochecha na minha, fez um barulhinho, aquilo nem beijo é, a gente se fala, e já foi logo abrindo a porta, me dispensando de ser cavalheiro. Eu sabia que nunca mais iria falar com aquela mulher. Tchau, eu disse de volta, te ligo,  prevendo que ela iria me bloquear.  Tim Maia no rádio.

Ah, Rosa, gostava tanto de você, quanta saudade. Eu sinto. Ah, Rosa.

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