sábado, 22 de outubro de 2016

Voo solitário como cada um no fundo é




Cheguei ao terraço do aeroporto, quinto andar. Rooftop na placa, a seta indicando em frente. Ridículo usar inglês quando as palavras existem na língua. O falso ar de quem pensa ser chique e elegante, e. Cheguei ao terraço.

Aquele céu inteiro aberto à minha frente, adjetivadamente bonito em cinzas de tantos pretos e brancos e alguma coisa alaranjada. O sol por detrás ameaçando aparecer no lado esquerdo, o relógio da Mesbla ali no cantinho, repara só. E o mar prateado, refletindo as cores mais escurecidas como em pinceladas pós-impressionistas. Daqui de cima é paisagem, de perto é esgoto, línguas negras, bactérias, lodo, restos.

As amendoeiras em frente repletas de pássaros, andorinhas, nunca sei os nomes dos pássaros. Só dos urubus e não são. Um círculo no ar, um revezamento tão exato, primeiro um, depois outro, e outro, e assim vão,  é o que fazem, as montanhas ao fundo. Desfilam na minha frente, nem batem asas. Inveja, queria planar daquele jeito, deve dar um frio no estômago. O Pão de Açúcar de um ângulo todo torto. Destemidos. E consigo flagrar um deles. Coisa linda, eu grito para ele. Ninguém por perto para me ouvir. E se tivesse eu faria igual. Não me importo com o que pensam, se grito para bichos voando na minha frente como se estivessem num palco. Coisa linda.

Voo solitário como cada um no fundo é, você me escreve quando te mando a foto.

Meu querido da vida inteira, fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho, eu te respondo mas a mensagem não sai da caixa. E no entanto concordo, no fundo a solidão está com todo mundo, até com os pássaros. Sobretudo com o pássaros nesse céu a perder de vista.

Agora o avião decolou, é só o prateado líquido aqui embaixo, as montanhas enviesadas. Ele, o avião, fura as camadas de nuvens e de repente é o sol na janelinha e a paisagem de algodão.

Seu sorriso é o que eu levo além da mala. Seu cheiro é o que gosto de sentir quando me percebo. É curioso a gente se dar conta dos cheiros que entranham a pele, o vapor que sobe do fogão, o alho e a cebola. O beijo no meu pescoço, cada penugem se arrepia. Você comendo o macarrão dizendo está muito bom.

Aquela menina de vinte você estranha, não acredita que sou eu, você disse. É uma certa perplexidade pensar que fui ela, eu sei disso, sinto também. Aqueles medos eu não tenho mais, a falta de coragem, as dúvidas. Talvez ela tivesse todo o tempo do mundo pela frente, pudesse ser assim, podia descobrir depois. Eu não tenho depois, o tempo passou. Eu tenho só o agora.  Ela achava que sabia tudo, eu não sei de nada.

Às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais. Quase sempre minha lembrança ecoa versos da Legião, hoje é Cazuza. Cada dia uma surpresa, tem sido assim.

O piloto avisa que faltam dez minutos para a chegada e faz vinte e dois graus. Tempo bom.

Tenho que desligar. Os pensamentos  podem ficar aqui a tantos mil pés, nunca mais acontecer a frase, esse texto. Disperso à toa, me encanto com nuvens e sóis, memórias de ontem, de hoje cedo, de outro dia mesmo, daquele chuveiro de luz azul, de um dia bem longe e a gente no banquinho no Arpoador, o trânsito parado na outra pista, o Dois Irmãos enevoado.

A cidade aparece em pontinhos de luz que vão crescendo, daqui vejo os carros, vão bem devagar, parecem de brinquedo, as casinhas, prediozinhos, arvorezinhas, o lago.

É tudo um caos. A vida.


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

OUTRO DIA MESMO



...

Agora vou até o mar. O cachorro não sossega, corre, o tamanho tão pequeno das patas  dificulta o movimento quando o terreno não é sólido. Mas ele gosta, fuça, cava buracos. É como eu, sente os cheiros, a areia fria e úmida. Gosto das pegadas. Os pezinhos afundados. Queria tatuar no ombro. Um dia.

Deixo a onda vir, molhar as canelas, inundar o bicho. 

Falta um tanto assim para a lua ficar bem redonda, está quase. Um certo véu em torno dela, não diria que é neblina. Neblina acontece com trinta e oito graus? É a marca  do termômetro espetado naquele quarteirão. Apesar do horário. Um veranico de repente, outro dia mesmo estava fresco. Outro dia mesmo você aqui. 

Antes, muito antes, atravessei aquela rua onde sempre te encontrava. Foi por acaso, quando reparei estava ali, naquela rua. O letreiro do bar vagabundo anunciando a cerveja, aquele ponto de encontro no meio do concreto quente, aquele vermelho do cartaz, as letras brancas. Uns sujeitos bebendo na calçada, marca de suor embaixo do braço, a comida engordurada no balcão, os copos de geleia, o cheiro azedo de cerveja quente e fritura velha. Te disse que sou como o cachorro, farejo.

E no entanto aquilo tudo. Aquela rua, meu carro parado, você entrava, me beijava, passava o cinto de segurança no peito. E seguíamos. Eu sempre segurava a sua mão e dava um beijo, como a pedir uma espécie de bênção. Seria? A mão macia, grande, que segurava a minha perna, gosto da sua coxa, você dizia enquanto sentia meu músculo, gosto da sua mão. Agora não, a dorzinha de engolir o choro  presa na garganta. Eu ando meio rouca, sabe?

O que eu queria era voltar no tempo,  só um pouquinho, um outro dia, e te encontrar ali, naquele pedaço de mundo, resgatar você, te trazer ao mar, um mergulho.  

E não, na vida real o tempo anda para a frente, é você quem retorna para um ponto no início, quer parar o tempo como se fosse possível, parar o tempo para entender tudo. Tudo o que? As respostas confusas. Não me dou bem com respostas confusas, elas se perdem  sem saber para onde ir, as respostas.  

Na vida real, da qual a gente não se esconde - e é esse seu erro, pensar que dá para se esconder, camuflar, se distrair -  na rua do bar do letreiro vermelho, o  sol queimou a pele, a roupa empapou, o sapato cismou em roçar o pé, a falta de band-aid. A dorzinha quase.

E agora a espuma do mar, os prédios lá longe, as luzes pontilhadas. Os carros. Faróis acesos. Bicicletas. Outros cachorros. Pombos.  A lua quase.

Antes, naquele ponto em frente ao bar, um pouco depois do posto de gasolina, a calçada fez uma curva. Nunca tinha reparado na curva. Não importa, o que eu reparo não conta. E então, escondido entre postes, um emaranhado de fios e uma amendoeira, o Cristo. Lá no alto, pairando, despercebido.  Aí, naquele ponto, a dorzinha passou.

A foto. O choro. O sol.

Agora não. O véu da lua. Vento nenhum. Os trinta e oito graus. O cachorro cansado. Língua de fora. A espuma branca. Uma espiga de milho para matar a fome. O mergulho. A dorzinha ressurge na garganta. A lua quase.








terça-feira, 6 de setembro de 2016

FIO DA MEADA



Querido,

Insisto no adjetivo.  Meu problema é ser repetitiva. E insistente, você acha.

Aquela foi a maior árvore que já vi. Na semana passada. Te falei dela. Parecia deslocada naquele cenário plano sem montanhas, naquela aridez de plantas que nascem rasteiras ao chão seco e avermelhado. Ficava num canto, a sombra espalhada pelo jardim inteiro.

Eu me deitei no gramado, sob a sombra, as mãos fechadas em concha por trás da cabeça. Observei as folhas verdes escuras, bem nutridas, parrudas. Os troncos como tecidos num fio. Grossas fibras que se misturavam, retorcidas há centenas de anos, e se tornavam uma só.

Meia lua perdida no azul, a recusa a se recolher, embora o sol despontasse no lado oposto. Nada de nuvens. O céu de uma violência despudorada a tirar o fôlego de quem ousasse olhar para cima, admirá-lo. Aquela cidade tem disso: um céu que vou te contar.

A grama com resquícios da madrugada. Eu tinha acabado de andar até o lago, descalcei os tênis e senti os pés pisando o chão, os pedregulhos machucando.  E então deitei sob a árvore gigante. A umidade atravessou a camiseta.  O cheiro da árvore, do orvalho aos poucos evaporando. Um vento calmo. Talvez eu chamasse aquele instante de paz.

São raros esses momentos, Querido, acredita em mim. São raros na vida inteira, se você quer saber. Agora dor na pele, arrepios, suor, amargo na base da língua.  Desassossego.

Te contei da árvore. Falei da sensação de aspereza do tronco na minha mão, do cheiro de musgo que senti. Seria um sonho ter você ali, admirado com os galhos fortes, com o verde das folhas, com os frutos marrons que se desprendiam e sujavam o gramado no entorno das raízes. Queria que olhasse o céu que nos acolhia. A ausência de nuvens. O céu que nos acolheria, o futuro que não vai acontecer.

Penso em você em todos os lugares onde eu vejo beleza, te falei disso, Querido. Lembro daquele filme em que o cara apaga a memória para não sofrer a perda e termina se apaixonando pela mesma moça que lhe causou tanta dor. Preciso reprogramar meu cérebro. Acostumei a te mandar fotos, as coisas belas eternizadas, essa mania. O bondinho pendurado entre os dois morros e uma orquídea em primeiro plano brotando num poste. Lembra? O feijão de Chicago e minha imagem distorcida. A floresta ao entardecer em riscos alaranjados. O cisne do jardim onde fomos e o reflexo do palácio na água do lago. O pavão que atravessou a varanda e se expôs, todo admirável.

No dia em que deitei sob a árvore, vi insetos passearem pelos veios. Aranha tecendo teia, os fios iluminados pelo raio de sol que atravessava a copa. Formigas carregando pequenos grãos. Fechei os olhos, pensei no universo, no quadro da sala, na explosão dos amarelos. Na sorte de ter te encontrado depois de tudo, de tanto tempo. E então, em casa, te abracei. A suavidade dos seus  cabelos quando passei os dedos na sua nuca e disse que saudade, e te beijei.  A sua alfazema.

O que que a gente faz com um sentimento de quase trinta anos, eu te perguntei. Gosto de você só um poço, um pocinho, um porquinho, um potinho, um danoninho, um bifinho. Uma bobagem, o poeminha bobo. O começo.

Preciso entender onde perdi o fio da meada.






domingo, 7 de agosto de 2016

ANIVERSÁRIO




Bart chegou em casa num 21 de setembro. Só 45 dias, um tiquinho de gente, de cachorro. Nascera em 8 de agosto. De 2003, lá no começo do século. Passou tanto tempo, passou tão rápido, aconteceu tanta coisa nesse intervalo entre aquele dia e hoje, em que observo sua velhice estendida no sofá.  

Era domingo de sol. A ninhada  reunida em torno da mãe, pretinha como ele, focinho e patas caramelo. As fêmeas bege, a cara do  Oto, já tinham dono. Oto, o nome do pai, nunca esqueci. O da mãe eu não me lembro. Iriam embora em dois ou três dias, as fofuras douradas. 

O prometido para nós era outro, um pouco maiorzinho.  Corria e tudo o danado, explorava o terreno cheirando os cantos, comia a comida dos outros, dava latidos curtos e implicava com os irmãos. Em um minuto mordiscou a ponta do cadarço do tênis que calçávamos. Peste.

O menor de todos, o frágil, o medroso,  me olhou de onde estava, protegido pela barriga gorda da mãe. E que olhos, meus deus, que olhos. Olhos pidões, caídos, mas vivos, percebendo um mundo que deveria existir à sua volta. Assustado, claro, afinal o mundo amedronta mesmo, ainda mais tendo tudo isso a se descobrir além do gramado. Depois do portão.  Da rua.

Eu o peguei no colo com delicadeza e não consegui mais largar. A orelha com uma penugem na parte de trás, a barriga cheia, rosada, as unhas finas a me espetar. E que pelo macio, brilhoso, que cheiro bom, de leite e de ração e sei lá de quê, de terra, de mato, de pulgas talvez.

No carro, enrolado na minha jaqueta, o choro não parou até chegar em casa. Era tão inocente, tão bobinho, coitado, que não sabia beber água na tigela e meio que enfiou o focinho inteiro, espirrou, entornou.

A comida eu dei na boca, e inauguramos ali, no mesmo dia, um jeito de nos tratarmos em que ele entende tudo que falo, os meus gestos, embora só faça o que quer, o sem vergonha. Eu aceito todos os resmungos, os latidos bravos e os de chamar a atenção, atendo os pedidos. Ou não.  Depende do dia, da hora, ele sabe disso. Ele acha que manda, eu penso que sou eu a chefe e assim tocamos até aqui.

Naqueles primeiros tempos, lá em 2003, naquele passado hoje tão distante e que passou tão rápido, ele andava aos tropeções. E de uma hora para a outra aprendeu a controlar as pernas e inaugurou o que demos o nome de circuito Bart: voltas e mais voltas correndo pela sala, pulando no sofá, apesar das patas tão curtas. Especialmente de manhã, quando acordava, como a saudar o dia inteiro pela frente. A minhoca maluca.

O circuito Bart agora, aos treze, é mais raro. Subir no sofá sozinho só quando há muita disposição, uma almofada dando sopa, por exemplo, pronta para ser estraçalhada. Ainda. Aos treze.

Nos tempos atuais a vontade de dormir é maior que nunca, embora a nossa caminhada diária esteja garantida, do mesmo jeito que a água de coco ao fim do passeio.  É um ritual sagrado, só quebrado nos dias de chuva, e chove pouco. Não inventa novidade, parece dizer quando resolvo andar um quarteirão a mais.  E trava, empaca, bicho teimoso, e faz ele mesmo o caminho de volta para casa, o rabo em pé. Eu só o sigo, é meu papel.

Resmungão, agora reclama muito mais e late à toa, a me lembrar a toda hora estou cansado, me ouve, respeita meus cabelos brancos e não demora, faz logo a minha vontade. E eu faço, vou dizer o quê nessa altura do campeonato.

Um erro enorme de quem inventou tudo, o mundo, o universo, a vida, é que o  tempo passa dessa forma tão acelerada. Poderia ser mais lento, sem perder o fôlego desse jeito.

Observo a velhice estendida no sofá, o mafuá da manta, e preparo o frango com arroz e cenoura especial para o aniversário.  Bem molinho, uma quase canja, que é como ele gosta.

Hoje o dia começou com palitos comestíveis e um coco inteiro para cravar os dentes e sentir a carne macia. Coisa dos deuses dos cachorros.

Te amo, bicho.  Você entende o som, a ternura na voz, amor da vida, e abana o rabo preguiçosamente enquanto te olho espreguiçar. E  só peço ao universo que o tempo passe meio devagar para garantir mais alguns bons anos juntos. Em paz. Com saúde. E amor, mas isso já está garantido há treze anos.

E um monte de cocos gelados com a carne macia.