terça-feira, 21 de julho de 2015

NÃO EXISTE MAIS

Céu de Teresópolis por trás da Serra dos Órgãos



Pela primeira vez em quantos, dezessete, dezoito anos? chego a Teresópolis de ônibus e minha mãe não me espera na rodoviária. Olho em volta, numa esperança remota de vê-la ali, o casacão pesado, o sorriso de felicidade ao me ver, o abraço. Ninguém me espera. A mãe só existe dentro de mim. Nas lembranças. No afeto. Em fotos. No nariz comprido que eu herdei. Nos cabelos cacheados e grossos. Na saudade.

Caminho pela rua em frente à rodoviária. A cidade se transformou, envelheceu mal, ganhou rugas e cabelos brancos que não se resolvem com uma maquiagem nem com uma tintura básica. Perdeu a forma, inchou.

A praça onde passei a infância é outra praça. Os mesmos bancos ocupados por outros velhos jogando damas. Outros vira-latas procuram o que comer, não os cachorros da minha época, esses não existem mais.

A padaria reformada. Um lustre de bolas pende do teto, bonito até, no lugar das antigas lâmpadas fluorescentes. O painel com um neon rosa que eletrocutava moscas e abelhas saiu dali. Ssss, era o barulhinho dos insetos ardendo, eu ouvia, ou imaginava que ouvia. Manolo, o padeiro de um olho verde e outro azul, não existe mais. O pão quente que ele me entregava e eu levava comendo as beiradas.   

A loja do meu pai. Agora tem outro nome. O pai que só existe dentro de mim. No gosto por fotografia. Na lembrança de passeios à noite, quando o comércio fechava e a cidade se recolhia. Nos rocamboles de doce de leite preparados aos domingos, salpicados de um açúcar fininho. No molho de macarrão que me ensinou a fazer e que às vezes eu repito, até hoje eu repito. O pai que há muito existe só na saudade. Nem lembro de sua voz. As vozes se perdem no vácuo.

A casa onde morávamos foi abaixo. Janelas, portas, as tábuas do teto altíssimo, a mesa comprida da sala, as cadeiras pesadas, o meu quarto. Nada, não existe mais nada. Quadrados de concreto tomaram o lugar. São lojas, coladas umas às outras, sem qualquer apelo à beleza. Ou estética. Fazem homenagem à feiura, à pura e simples feiura.

Os letreiros exageradamente coloridos que teimam em afirmar aqui é uma farmácia, um açougue, uma sapataria, como se a gente fosse incapaz de identificar o que são. Precisam gritar, se jogar à sua frente, escancarar suas mercadorias. Vendem-se produtos naturais, uma loja de 1,99, outra loja de 1,99, mais uma. Estacionamentos. É só o que há por ali, bugigangas vulgares, remédios.  E carros. Carros e motos que atravancam as ruas.

A mesma igreja, agora pintada de uma cor indefinida, creme, bege, que cor é essa, meu deus?, as manchas escuras da corrosão do tempo. Atravesso a porta pesada de madeira. Encaro. As estátuas que estiveram lá desde sempre, que eu percorria, uma a uma,  com algum louvor e quem sabe uma crença de criança que teme desobedecer os mandamentos.

O Senhor morto que me impressionava tanto.  O pano roxo e brilhoso sobre seu corpo, os pés de fora, que eu fingia beijar seguindo ordens de algum adulto, mas dos quais eu sempre senti nojo e beijava mesmo a minha própria mão. Os mesmos pés de fora, gelados, as unhas de gesso, mal feitas, como eu me importava com aquelas unhas?

No outro lado, Jesus carregando a cruz com o olhar mais sofrido do mundo. Parecia me observar, me seguia pela igreja e eu me comportava. Hoje aquele olhar é só uma bola de vidro. Duas. Eu posando para a foto de primeira comunhão ao lado dele, um sorriso sem graça o meu, a pessoa errada com a roupa errada, aquele véu na minha cabeça, aquela túnica branca, as sandálias. A pessoa que, meses depois, perdeu qualquer vestígio de fé. Aos doze anos.

Teu pai morreu, a Maria me disse quando eu cheguei, os olhos vermelhos os dela, eu vinda às pressas da casa mais acima, onde eu brincava. Era uma época em que eu ainda brincava. A mãe da amiga atendeu o telefone e me olhou, estão te chamando, a voz embargada e mais nada. E eu fui descendo a rua, desconfiando de coisa séria, abri o portão de ferro da casa. E cheguei. Teu pai morreu.  A mamãe tinha falado, naquele dia mesmo, bem cedo, quando acordei, vai ficar tudo bem. E teu pai. A Maria não existe mais. Teu pai. Não existe mais.

A luz do sol atravessa os vitrais. Uma vela grande no altar. O padre e sua veste vermelha e dourada. Parece o McDonald’s. Os anjos tocam trombetas pendurados por um fio. A cerimônia começa.  A luz do sol. A missa da mãe da minha cunhada, avó da minha sobrinha, a bisa. As pessoas se levantam. Sentam. Depois se levantam de novo. E ajoelham. E se abraçam. E me abraçam. A paz de Cristo. Sim, é o que eu digo. Que paz?

Depois as conversas no café, a vida de cada um, o chocolate quente. As pessoas que existem e que há tanto não vejo.

***

Visito minha amiga de infância, a que me salvou do abandono quando a mamãe atrasou numa festa do colégio. Me consolou, me abraçou, enxugou minhas lágrimas com seus dedinhos pequenos, não chora, ela vem. E ela chegou, a mamãe. Chegou, acenou, e eu me apresentei tranquila. Tínhamos sete anos. A amiga me consolou várias vezes depois ao longo dos anos. Amor é isso. Seu filho é meu afilhado. Barbudo e de coque. Ainda ontem ele era um moleque de cachos louros que eu levava para o clube com um golfinho inflável no qual flutuávamos na piscina. Era grande o golfinho e eu o carregava meio flácido, pela rua, debaixo do braço, aquele bicho enorme, para encher no posto. A outra mão segurando a mão do menino.

O tempo passa e parece que foi ontem que corríamos, minha amiga e eu, pelo corredor do prédio dela, jogando bola, ou pique, subindo e descendo as escadas, azucrinando o porteiro que se arrastava atrás de nós para encerrar a brincadeira. Nós ganhávamos dele. Sempre. O porteiro não existe mais.

A mãe da amiga, que deu um duro danado na vida, que criou quatro filhos, que ajudou a criar oito netos, que dava conselhos geniais à minha amiga, não me reconhece mais. Não lembra do meu rosto, esse rosto igual àquele que dava as caras por lá toda hora, que se lambuzava de cachorro quente. Um rosto um pouco mais envelhecido, é verdade, mas o mesmo sorriso, o mesmo queixo, os mesmos olhos.

Perdida em sua própria vida, a mãe dela. Não sabe se é noite. Bom dia. Se já dormiu. Ou se já acordou. Esquece que comeu. Se comeu. Se tomou banho. O que é o ato de abrir a torneira, ficar embaixo do chuveiro. Frágil.

Lembranças indo embora à medida que os dias passam. E os dias se vão tão rápido feito aquelas nuvens de filme que mostram o avanço das horas. Quem é você? E eu explico, ela balança a cabeça. Sinto o vazio que há lá dentro.

Você é filha de quem? E eu digo o nome da mamãe. Lembra dela, vocês conversavam tanto, você dizia que achava as pernas da mamãe lindas, lembra, eu pergunto. À toa. Balança a cabeça. Vazio aqui dentro. 

Olhos de perplexidade os dela, de quem vê a pessoa pela primeira vez como quem vê um quadro qualquer, um móvel, um vaso. E me repete as mesmas perguntas. E eu respondo  as mesmas respostas com um nó na garganta e uma vontade de dizer como eu gosto de você, ouve isso, eu gosto muito de você, você sempre foi minha família, mas não digo, porque se disser vou chorar.

E ainda bem que o cachorro pula em mim naquela hora em que as lágrimas nascem não sei onde dentro do olho e chegam à beira. Ele morde meu braço numa brincadeira interminável, tenta me derrubar o brutamontes tão dócil, suja minha calça com suas patas de quem cavou na grama.

A mãe da amiga existe. Ainda. Mas não existe mais.











Um comentário:

  1. A emoção tomou conta...Leio e choro!! Comentar o que depois de ler esse texto maravilhoso que me fez viajar no tempo, no nosso tempo! Nas nossas histórias!
    Minha eterna amiga... Te adoro!!!

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