terça-feira, 7 de julho de 2015

DONA CARMEN

Aniversário de 12 anos. Eu no meio, de blusa listrada. À minha direita, Ana, de vermelho, que também me deixa saudades grandes. À esquerda, Renata. Atrás dela, pequenino, Ricardo. Ao lado, Anita e Andréa, de quem não tive mais notícias. E à esquerda, os pés da vovó.

Eu estava no quarto do hotel, numa viagem a trabalho, quando um colega enviou um texto para meu grupo de oficina literária. Era um texto tão lindo, sobre a avó dele, que me despertou uma saudade da minha própria avó, com quem tive convivência limitada. Ela era velhinha e, talvez por isso, não desempenhou o papel tradicional das avós que tomam conta dos netos, que fazem bolos e guloseimas.
Ela morreu dormindo aos 92 anos, lúcida, perfeitinha, ainda uma mestre em bordar e escrever com a letra de professora. Eu tinha 12, foi a primeira perda na minha vida, e mal sabia que haveria de ter outras tantas depois.
A minha avó não cozinhava bem. Cozinhava muitíssimo mal. Um dia me convidou para almoçar na casa dela e preparou uma galinha. Branca, pálida, com uma camada de gordura amarela e aquela aparência eternamente arrepiada. A vovó colocou a comida no prato para mim e eu tentava mastigar e engolir, sentindo os arrepiados na ponta da língua, quando ela pegou o pé da galinha cozido. Aquelas unhas. E chupou. Não teve jeito. O estômago revirou, um ácido percorreu o caminho inverso até a boca. Corri para o banheiro. Acabou o almoço.
Minha avó era vaidosíssima, mesmo sendo coberta por rugas. Eu olhava sua papada, que balançava quando ela se mexia, pegava em sua mão cheia de veias azuis, pintas e manchas, esticava a pele e via as rugas desaparecerem, um toque que parecia lenço de papel amassado.
Eu tive catapora e, quando melhorei, minha irmã me levou para visitarmos a vovó. Chegamos lá, subimos as escadas de acesso à varanda. A escada de pedras, onde eu observava casulos e esperava a borboleta que sairia dali. E nunca vi, perdi todos os momentos mágicos, as asas nunca se revelaram ao meu olhar. O mesmo casulo, quando eu o encontrava de novo, estava vazio, arrebentado, pendurado por um fio.
E entrei no quarto da vovó, eu fraquinha, andava comendo mal por conta da catapora. A vovó me chegou com uns cremes gosmentos no rosto, para tirar as rugas, um cheiro muito forte, e me deu um beijo. Eu, enjoadinha, senti o perfume da mistura e o gelado do creme esbarrar no meu próprio rosto. E não teve jeito. O estômago revirou, os outros órgãos deram sinal de existência, de novo um ácido percorreu o caminho inverso até a boca. Mais uma vez, eu corri para o banheiro. A visita acabou.
Alguém ia se casar e a vovó fez o cabelo para o casamento, todo armado, meio azulado. Fomos, meu pai, minha mãe, a vovó na frente e eu logo atrás. Para Petrópolis. Todos arrumados, naqueles vestidos over dos anos 70. Eu nunca gostei de me sentir abafada e a vovó não podia abrir o vidro do carro porque ia desmanchar o penteado. Eu sempre enjoei com as curvas da Teresópolis-Petrópolis. Não tinha para onde correr, embora as vertigens e náuseas levassem tudo se revirar e, sim, desfiz todo o penteado. Acabou o casamento.
Apesar de eu ter estragado alguns momentos bons dela, ela gostava bastante de mim, sua neta mais nova, depois de todos os outros já adultos, a raspa do tacho, como ela dizia.
Quando eu ia ao quintal colher jaboticabas e subia até o mais alto da árvore que eu conseguia, ela ficava de baixo, me apontando os galhos cheios de bolinhas pretas, que eu colocava num sacola amarrada na cintura. Depois comíamos juntas, uma bacia no colo, sentadas num banquinho de madeira. Nunca houve jaboticabas como as da casa da vovó.
Na foto da festa de aniversário dos meus 12 anos, seus pés aparecem num canto, calçados de um sapatinho preto e com meias de nylon que iam até os joelhos. Ao lado dos pés, minha turma e eu. Mal enquadramento. Ela morreu uma semana depois e ninguém nunca teve coragem de cortar os pés da vovó da foto.
Dona Carmen, o nome dela. Estranhamente, sozinha no quarto de hotel, senti uma grande saudade.

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