terça-feira, 28 de julho de 2015

COPACABANA PALACE



Lota, minha mãe, vive no Copacabana Palace. Eu falo com ela sempre que desço do ônibus na Atlântica, a caminho do escritório.

Era novembro de 2003, décimo nono dia do mês, quando ela se mudou para lá.

Dois dias antes, um domingo típico de um verão estúpido, daqueles de céu ardentemente azul sem uma única nuvem, sem uma só brisa, um calor a bafejar no rosto, eu percebi o rumo que a história tinha tomado.

Desde setembro era um dia pior que o outro, mas um domingo como aquele nunca havia existido.

Eu sentei ao lado da Lota na cama. Ela havia entrado numa fase em que não se levantava mais. Os olhos fechados, respirava fundo. Os olhos fundos, embora fechados. Quando abertos, opacos. O rosto encovado. A pele amarelada da falta de sol e do fígado que não tinha mais como fazer seu trabalho.

Passei os dedos em seus cabelos, tão grisalhos e macios. O mesmo cheiro de lavanda da vida inteira. Segurei suas mãos entre as minhas. Senti os ossos, percorri as veias arroxeadas, a pele que se desprendia da carne, sem viço.

Foi naquele dia que tive uma conversa séria com meu pai e o dindo, as mãos dela entre as minhas. O silêncio na casa.

Me ajudem, foi o que pedi. Eu não posso mais, não tem mais jeito. Meu tempo acabou.

A segunda-feira foi mais difícil que o domingo. Tive que chamar o médico, que me disse se vocês tiverem sorte, ela chega até o Natal. Sorte, eu tive que perguntar, estarrecida com a palavra, com vontade de dizer doutor, o senhor sabe o significado de sorte?

Ela não quis comer nem o bolinho de bacalhau que eu tinha levado. Todos os dias eu levava alguma coisa gostosa, que abrisse um pouquinho o apetite. A dieta estava liberada. Pastel de camarão. Pêssego. Sanduíche de lombinho. Caldinho de feijão. Melancia.  O problema é que nada apetecia. Naquela segunda, não quis comer nada. Também não quis o suco de fruta do conde. Só pediu não me interna, e eu prometi, não vou internar. De jeito nenhum. Mas come só um pouquinho, e ela tomou uma sopa. Umas  duas, três colheradas.

E  depois dormiu, segurando minha mão, e eu repeti pai, me ajuda. Dindo, me ajuda. Meu tempo acabou.

Já era noite quando me despedi. Te amo e ela sorriu. Amanhã cedo eu volto. Fica com os anjos, ela me disse com a voz bem baixa. Você também, respondi, mesmo sem acreditar nos anjos. E fui para casa.

Passava das dez quando o telefone tocou aquele som das emergências, desperta o primitivo dentro de nós, causa um arrepio, faz um disparar do coração. Eu saía do banho, Bart me seguia pela casa. Três meses, uma minhoca magra de andar trôpego e um rabo comprido.

Sua mãe fez óbito, a cuidadora disse. Silêncio. Sua mãe fez óbito. Respirei como se precisasse de todo o ar do mundo lá fora. Entendi. Já vou praí. Liguei para a família, Acabou, foi o que disse. Acabou.

Pai, dindo, façam uma festa. Ela chegou.

***

Dois dias depois, gaivotas seguiam seus trajetos, a primeira se revezando com as demais, sobrevoavam a superfície do mar à procura de um peixe que desse bobeira.

Era por volta das onze da manhã e a praia meio vazia, inesperadamente deserta para um dia tão quente. Na areia escurecida, algumas crianças brincavam, babás as olhavam e uns poucos vendedores de mate e biscoito perambulavam.

Estacionamos na rua ao lado do Copacabana Palace, em frente à Tratoria. Hoje em dia almoço lá de vez em quando, a trabalho. O escritório é atrás do hotel.

Pegamos a pequena urna, que estava no meu colo, e a carregamos, meu irmão e eu, com cuidado.  Minha irmã não quis ir. Minha cunhada e meu marido acompanhavam.

Atravessamos a Atlântica e enfrentamos aquele deserto até a beira do mar.

Ali, abrimos a urna. Não tinha vento.  Pegamos o pó e jogamos perto das ondas, como se semeássemos uma planta. É uma poeira grossa, seixos.  Em nada se parece com filmes, com música de fundo e sequências sobrepostas. A nossa cena era seca, embora o mar estivesse logo ali.  Era calor, poeira nas mãos, suor, lágrimas, uma falta danada ardendo no peito e um vendedor de mate nos olhando, intrigado.

Lota adorava Copacabana. Eram de lá as lembranças da adolescência na casa da Toneleros, do Sacre-Couer de Marie, da elegância da Galeria Menescal, dos sorvetes do Cirandinha, dos filmes no Rian e no Roxy. Ah, a Princesinha do Mar, ela sempre falava quando passeava  por lá, cheia de nostalgia.

Decidimos pelo Copacabana Palace pela beleza, pela eternidade.  Pelo imensidão do oceano. Era onde ela merecia ficar.

E passados alguns anos, sempre que desço do ônibus, de certa forma a vejo naquele pedacinho de areia onde repousamos as cinzas.

Sei que ela acena para mim. Me acompanha.

Me dá paz.













terça-feira, 21 de julho de 2015

NÃO EXISTE MAIS

Céu de Teresópolis por trás da Serra dos Órgãos



Pela primeira vez em quantos, dezessete, dezoito anos? chego a Teresópolis de ônibus e minha mãe não me espera na rodoviária. Olho em volta, numa esperança remota de vê-la ali, o casacão pesado, o sorriso de felicidade ao me ver, o abraço. Ninguém me espera. A mãe só existe dentro de mim. Nas lembranças. No afeto. Em fotos. No nariz comprido que eu herdei. Nos cabelos cacheados e grossos. Na saudade.

Caminho pela rua em frente à rodoviária. A cidade se transformou, envelheceu mal, ganhou rugas e cabelos brancos que não se resolvem com uma maquiagem nem com uma tintura básica. Perdeu a forma, inchou.

A praça onde passei a infância é outra praça. Os mesmos bancos ocupados por outros velhos jogando damas. Outros vira-latas procuram o que comer, não os cachorros da minha época, esses não existem mais.

A padaria reformada. Um lustre de bolas pende do teto, bonito até, no lugar das antigas lâmpadas fluorescentes. O painel com um neon rosa que eletrocutava moscas e abelhas saiu dali. Ssss, era o barulhinho dos insetos ardendo, eu ouvia, ou imaginava que ouvia. Manolo, o padeiro de um olho verde e outro azul, não existe mais. O pão quente que ele me entregava e eu levava comendo as beiradas.   

A loja do meu pai. Agora tem outro nome. O pai que só existe dentro de mim. No gosto por fotografia. Na lembrança de passeios à noite, quando o comércio fechava e a cidade se recolhia. Nos rocamboles de doce de leite preparados aos domingos, salpicados de um açúcar fininho. No molho de macarrão que me ensinou a fazer e que às vezes eu repito, até hoje eu repito. O pai que há muito existe só na saudade. Nem lembro de sua voz. As vozes se perdem no vácuo.

A casa onde morávamos foi abaixo. Janelas, portas, as tábuas do teto altíssimo, a mesa comprida da sala, as cadeiras pesadas, o meu quarto. Nada, não existe mais nada. Quadrados de concreto tomaram o lugar. São lojas, coladas umas às outras, sem qualquer apelo à beleza. Ou estética. Fazem homenagem à feiura, à pura e simples feiura.

Os letreiros exageradamente coloridos que teimam em afirmar aqui é uma farmácia, um açougue, uma sapataria, como se a gente fosse incapaz de identificar o que são. Precisam gritar, se jogar à sua frente, escancarar suas mercadorias. Vendem-se produtos naturais, uma loja de 1,99, outra loja de 1,99, mais uma. Estacionamentos. É só o que há por ali, bugigangas vulgares, remédios.  E carros. Carros e motos que atravancam as ruas.

A mesma igreja, agora pintada de uma cor indefinida, creme, bege, que cor é essa, meu deus?, as manchas escuras da corrosão do tempo. Atravesso a porta pesada de madeira. Encaro. As estátuas que estiveram lá desde sempre, que eu percorria, uma a uma,  com algum louvor e quem sabe uma crença de criança que teme desobedecer os mandamentos.

O Senhor morto que me impressionava tanto.  O pano roxo e brilhoso sobre seu corpo, os pés de fora, que eu fingia beijar seguindo ordens de algum adulto, mas dos quais eu sempre senti nojo e beijava mesmo a minha própria mão. Os mesmos pés de fora, gelados, as unhas de gesso, mal feitas, como eu me importava com aquelas unhas?

No outro lado, Jesus carregando a cruz com o olhar mais sofrido do mundo. Parecia me observar, me seguia pela igreja e eu me comportava. Hoje aquele olhar é só uma bola de vidro. Duas. Eu posando para a foto de primeira comunhão ao lado dele, um sorriso sem graça o meu, a pessoa errada com a roupa errada, aquele véu na minha cabeça, aquela túnica branca, as sandálias. A pessoa que, meses depois, perdeu qualquer vestígio de fé. Aos doze anos.

Teu pai morreu, a Maria me disse quando eu cheguei, os olhos vermelhos os dela, eu vinda às pressas da casa mais acima, onde eu brincava. Era uma época em que eu ainda brincava. A mãe da amiga atendeu o telefone e me olhou, estão te chamando, a voz embargada e mais nada. E eu fui descendo a rua, desconfiando de coisa séria, abri o portão de ferro da casa. E cheguei. Teu pai morreu.  A mamãe tinha falado, naquele dia mesmo, bem cedo, quando acordei, vai ficar tudo bem. E teu pai. A Maria não existe mais. Teu pai. Não existe mais.

A luz do sol atravessa os vitrais. Uma vela grande no altar. O padre e sua veste vermelha e dourada. Parece o McDonald’s. Os anjos tocam trombetas pendurados por um fio. A cerimônia começa.  A luz do sol. A missa da mãe da minha cunhada, avó da minha sobrinha, a bisa. As pessoas se levantam. Sentam. Depois se levantam de novo. E ajoelham. E se abraçam. E me abraçam. A paz de Cristo. Sim, é o que eu digo. Que paz?

Depois as conversas no café, a vida de cada um, o chocolate quente. As pessoas que existem e que há tanto não vejo.

***

Visito minha amiga de infância, a que me salvou do abandono quando a mamãe atrasou numa festa do colégio. Me consolou, me abraçou, enxugou minhas lágrimas com seus dedinhos pequenos, não chora, ela vem. E ela chegou, a mamãe. Chegou, acenou, e eu me apresentei tranquila. Tínhamos sete anos. A amiga me consolou várias vezes depois ao longo dos anos. Amor é isso. Seu filho é meu afilhado. Barbudo e de coque. Ainda ontem ele era um moleque de cachos louros que eu levava para o clube com um golfinho inflável no qual flutuávamos na piscina. Era grande o golfinho e eu o carregava meio flácido, pela rua, debaixo do braço, aquele bicho enorme, para encher no posto. A outra mão segurando a mão do menino.

O tempo passa e parece que foi ontem que corríamos, minha amiga e eu, pelo corredor do prédio dela, jogando bola, ou pique, subindo e descendo as escadas, azucrinando o porteiro que se arrastava atrás de nós para encerrar a brincadeira. Nós ganhávamos dele. Sempre. O porteiro não existe mais.

A mãe da amiga, que deu um duro danado na vida, que criou quatro filhos, que ajudou a criar oito netos, que dava conselhos geniais à minha amiga, não me reconhece mais. Não lembra do meu rosto, esse rosto igual àquele que dava as caras por lá toda hora, que se lambuzava de cachorro quente. Um rosto um pouco mais envelhecido, é verdade, mas o mesmo sorriso, o mesmo queixo, os mesmos olhos.

Perdida em sua própria vida, a mãe dela. Não sabe se é noite. Bom dia. Se já dormiu. Ou se já acordou. Esquece que comeu. Se comeu. Se tomou banho. O que é o ato de abrir a torneira, ficar embaixo do chuveiro. Frágil.

Lembranças indo embora à medida que os dias passam. E os dias se vão tão rápido feito aquelas nuvens de filme que mostram o avanço das horas. Quem é você? E eu explico, ela balança a cabeça. Sinto o vazio que há lá dentro.

Você é filha de quem? E eu digo o nome da mamãe. Lembra dela, vocês conversavam tanto, você dizia que achava as pernas da mamãe lindas, lembra, eu pergunto. À toa. Balança a cabeça. Vazio aqui dentro. 

Olhos de perplexidade os dela, de quem vê a pessoa pela primeira vez como quem vê um quadro qualquer, um móvel, um vaso. E me repete as mesmas perguntas. E eu respondo  as mesmas respostas com um nó na garganta e uma vontade de dizer como eu gosto de você, ouve isso, eu gosto muito de você, você sempre foi minha família, mas não digo, porque se disser vou chorar.

E ainda bem que o cachorro pula em mim naquela hora em que as lágrimas nascem não sei onde dentro do olho e chegam à beira. Ele morde meu braço numa brincadeira interminável, tenta me derrubar o brutamontes tão dócil, suja minha calça com suas patas de quem cavou na grama.

A mãe da amiga existe. Ainda. Mas não existe mais.











segunda-feira, 13 de julho de 2015

MELANCOLIA




Quando a menina era pequena, pensava no século vinte e um como tão distante de tudo e  quase como ficção científica, um mundo como o dos Jetsons: ela andaria de carro voador, teria um robô rodando pela casa, um sapato skate que a faria deslizar pelo espaço. É claro que a casa da menina flutuaria no espaço, seria toda de vidro e ela teria um cachorro com uma hélice na cabeça, que alcançaria as bolas mais altas e as traria de volta.

Ela tem o cachorro, é feliz pelo fato dele dormir enroscado em suas pernas. Mas não é mais uma menina há tempos e o mundo dos dias atuais está muito diferente do que ela queria. A felicidade, essa é só uma abstração, ela pensa. A menina do outro dia, dos dias passados, a menina que existiu há tempos, essa veria tudo de outra forma, talvez em tons pastéis como os dos desenhos que fazia a lápis nas folhas de papel, mergulhada em sua infância feliz de cidade de interior.

Na imaginação da menina, os tempos do séculos vinte e um não teriam espaço para coisas ruins, para dores, para lágrimas. Seria só o vento, o céu azul, as nuvens brancas, as montanhas acinzentadas e cobertas de vegetação, a água limpa vinda de uma nascente. Carros voadores. Casas flutuantes. 

Era uma época, aquela em que a menina vivia, em que ela rezava todas as noites, pedindo proteção, e falava os nomes dos seus lá de sua casa, um por um, até pegar no sono e dormir com os anjos.

Na casa da menina, lá no passado, havia uma árvore de natal prateada que ela achava linda, absurdamente linda. Aos poucos, as bolas se quebraram, os fios prateados caíram. Colocaram um pinheiro  em seu lugar, para ela sem graça, exposto num canto qualquer, por mais enfeitado que estivesse.  Foi na mesma época em que seu pai morreu e a menina começou a crescer, teve que ser menos menina. Um certo medo do futuro começou, ele poderia não ser tão bom, com elevador de teletransporte,  controle da gravidade,  coisa e tal.


A menina, quando bem pequena, tentava ficar acordada nas noites do réveillon para ver o ano velho indo embora, com uma bengala torta e quase cego, enrolado em trapos, e o ano novo chegando, ainda de fraldas e chupeta. Mas ela dormia e, no dia seguinte, prometia que ia conseguir ver a chegada do ano novo no ano que vem. Quando conseguiu esperar a meia-noite acordada,  a noite foi igual a qualquer outra e perdeu toda a graça. É só uma data no calendário, a menina aprendeu e repetiu por todos os anos, em todas as datas, até nesses dias no século vinte e um, onde ela vive.

Pessoas morreram e sentimentos acabaram. A menina não imaginava isso, mas aconteceu, e ela aprendeu que há tempos bons e tempos ruins.

É inverno, e faz um calor bom, de vem em quando o céu fica azul sem nenhuma nuvem, a paisagem é de um verde quase constrangedor, brilhoso, apesar de folhas secas no chão. Madrugada, pela janela entra um ar fresco, perfumado pelos flamboyants que enfeitam a rua, e é um cheiro que atiça a menina que ainda tenta dormir, mas não consegue.

O sono não chega. Ela não reza mais antes de dormir há tempos, fecha os olhos e pronto. Ou não, e rola na cama de insônia.  E assiste a filmes ou lê livros.

É mais ou menos isso. Ou, como naqueles desenhos do Globinho, dos seus sete, oito anos: That’s All Folks.