Lota, minha mãe, vive no Copacabana Palace. Eu falo com ela
sempre que desço do ônibus na Atlântica, a caminho do escritório.
Era novembro de 2003, décimo nono dia do mês, quando ela se
mudou para lá.
Dois dias antes, um domingo típico de um verão estúpido, daqueles
de céu ardentemente azul sem uma única nuvem, sem uma só brisa, um calor a
bafejar no rosto, eu percebi o rumo que a história tinha tomado.
Desde setembro era um dia pior que o outro, mas um domingo
como aquele nunca havia existido.
Eu sentei ao lado da Lota na cama. Ela havia entrado numa
fase em que não se levantava mais. Os olhos fechados, respirava fundo. Os olhos
fundos, embora fechados. Quando abertos, opacos. O rosto encovado. A pele
amarelada da falta de sol e do fígado que não tinha mais como fazer seu
trabalho.
Passei os dedos em seus cabelos, tão grisalhos e macios. O
mesmo cheiro de lavanda da vida inteira. Segurei suas mãos entre as minhas.
Senti os ossos, percorri as veias arroxeadas, a pele que se desprendia da
carne, sem viço.
Foi naquele dia que tive uma conversa séria com meu pai e o
dindo, as mãos dela entre as minhas. O silêncio na casa.
Me ajudem, foi o que pedi. Eu não posso mais, não tem mais
jeito. Meu tempo acabou.
A segunda-feira foi mais difícil que o domingo. Tive que
chamar o médico, que me disse se vocês tiverem sorte, ela chega até o Natal.
Sorte, eu tive que perguntar, estarrecida com a palavra, com vontade de dizer doutor,
o senhor sabe o significado de sorte?
Ela não quis comer nem o bolinho de bacalhau que eu tinha
levado. Todos os dias eu levava alguma coisa gostosa, que abrisse um pouquinho
o apetite. A dieta estava liberada. Pastel de camarão. Pêssego. Sanduíche de
lombinho. Caldinho de feijão. Melancia. O problema é que nada apetecia. Naquela
segunda, não quis comer nada. Também não quis o suco de fruta do conde. Só
pediu não me interna, e eu prometi, não vou internar. De jeito nenhum. Mas come
só um pouquinho, e ela tomou uma sopa. Umas duas, três colheradas.
E depois dormiu,
segurando minha mão, e eu repeti pai, me ajuda. Dindo, me ajuda. Meu tempo
acabou.
Já era noite quando me despedi. Te amo e ela sorriu. Amanhã
cedo eu volto. Fica com os anjos, ela me disse com a voz bem baixa. Você
também, respondi, mesmo sem acreditar nos anjos. E fui para casa.
Passava das dez quando o telefone tocou aquele som das
emergências, desperta o primitivo dentro de nós, causa um arrepio, faz um
disparar do coração. Eu saía do banho, Bart me seguia pela casa. Três meses,
uma minhoca magra de andar trôpego e um rabo comprido.
Sua mãe fez óbito, a cuidadora disse. Silêncio. Sua mãe fez
óbito. Respirei como se precisasse de todo o ar do mundo lá fora. Entendi. Já
vou praí. Liguei para a família, Acabou, foi o que disse. Acabou.
Pai, dindo, façam uma festa. Ela chegou.
***
Dois dias depois, gaivotas seguiam seus trajetos, a primeira
se revezando com as demais, sobrevoavam a superfície do mar à procura de um
peixe que desse bobeira.
Era por volta das onze da manhã e a praia meio vazia, inesperadamente
deserta para um dia tão quente. Na areia escurecida, algumas crianças brincavam,
babás as olhavam e uns poucos vendedores de mate e biscoito perambulavam.
Estacionamos na rua ao lado do Copacabana Palace, em frente
à Tratoria. Hoje em dia almoço lá de vez em quando, a trabalho. O escritório é
atrás do hotel.
Pegamos a pequena urna, que estava no meu colo, e a
carregamos, meu irmão e eu, com cuidado. Minha irmã não quis ir. Minha cunhada e meu
marido acompanhavam.
Atravessamos a Atlântica e enfrentamos aquele deserto até a
beira do mar.
Ali, abrimos a urna. Não tinha vento. Pegamos o pó e jogamos perto das ondas, como
se semeássemos uma planta. É uma poeira grossa, seixos. Em nada se parece com filmes, com música de
fundo e sequências sobrepostas. A nossa cena era seca, embora o mar estivesse
logo ali. Era calor, poeira nas mãos,
suor, lágrimas, uma falta danada ardendo no peito e um vendedor de mate nos
olhando, intrigado.
Lota adorava Copacabana. Eram de lá as lembranças da
adolescência na casa da Toneleros, do Sacre-Couer de Marie, da elegância da Galeria
Menescal, dos sorvetes do Cirandinha, dos filmes no Rian e no Roxy. Ah, a
Princesinha do Mar, ela sempre falava quando passeava por lá, cheia de nostalgia.
Decidimos pelo Copacabana Palace pela beleza, pela
eternidade. Pelo imensidão do oceano.
Era onde ela merecia ficar.
E passados alguns anos, sempre que desço do ônibus, de certa
forma a vejo naquele pedacinho de areia onde repousamos as cinzas.
Sei que ela acena para mim. Me acompanha.
Me dá paz.