Uma neta perde o avô que a criou. Um avô que foi, para ela,
o pai que ela não teve. Um avô que era o sonho de qualquer neta, amoroso,
compreensivo, justo.
Ele era Ytzhak Rabin, primeiro ministro de Israel,
assassinado por um extremista judeu em 1995, logo após fazer um comício em Tel
Aviv, e pouco tempo depois de ter apertado a mão de Yasser Arafat, um
arqui-inimigo, presidente da Organização de Libertação da Palestina. Em 1994,
ambos foram agraciados com o Nobel da Paz.
A neta em questão é Noa
Ben-Artzi Pelossof, autora do livro Meu
Saba, em Nome da Dor e da Esperança, cujo avô era Rabin. Transformado em peça pelo competentíssimo
diretor Daniel Herz, Meu Saba, o resultado
é um espetáculo emocionante, cujo tema principal é o amor e os laços afetivos,
mais do que política ou religião.
Clarissa Kahana, atriz de Meu Saba |
A história se passa durante o velório de Rabin, nos 30
segundos que separam a cadeira de Noa, ao lado de sua família, do púlpito onde
está o microfone em que ela fará um discurso em homenagem ao avô. A menina, aos
19 anos, está cercada pelos maiores líderes mundiais da época. É uma agonia o
que sente: o medo de falar diante daquela gente toda, o assombro por um judeu
ter assassinado seu avô, a dor da perda, todos os papeis que o avô representou
para ela.
Um dia antes, assisti a O
Rinoceronte, de Ionesco, numa montagem belíssima do Théâtre de la Ville de
Paris, dentro de um festival que a Cidade das Artes estava sediando.
Impactante. Inexplicavelmente, os habitantes de uma vila se transformam em
rinocerontes à exceção do protagonista, que assiste a tudo incrédulo. Ionesco
escreveu a peça em 1959, para mostrar sua estupefação com o nazismo na Europa.
Cena de O Rinoceronte, do Théâtre de la Ville de Paris |
A estupefação se dá diante do nazismo ou de qualquer outro
contexto, com uma minoria que se impõe e, sem ser questionada, domina toda uma
sociedade. Mais ou menos como o que
vivemos atualmente, a violência bárbara em todas as esferas, a corrupção, a
falta de educação, a falta de cultura. A falta. Apesar dos indicadores sociais
terem melhorado, dizem.
O que pode explicar as taxas de mais de 53 mil vítimas de
crimes violentos anuais, a letalidade da polícia, os 50 mil estupros anuais? Como podemos nos ver como nação se 32% da
população não confiam no Poder Judiciário e só 33% acreditam no trabalho da
polícia, segundo pesquisas?
Não
consigo entender como um país em desenvolvimento, entre as dez maiores
economias mundiais, há 15 anos vivendo no século 21, pode ainda discriminar
tanto o outro, por orientação sexual, gênero, cor da pele, classe social.
Lembro
um artigo da Cora Rónai que, voltando de uma viagem e chegando ao Galeão, diz
que tem pena de nós, brasileiros, “que
continuamos aqui, num país cada vez mais hostil, que conseguiu a proeza de
passar da barbárie à decadência sem atravessar qualquer período de
civilização”.
Eu também
me assombro com essa capacidade que tem o chamado povo cordial de permanecer na
incivilidade, seja em casa, ainda
cercado por suas empregadas, seja com os vizinhos, para quem se nega um bom dia
ou um obrigada. Na incivilidade do trânsito violento. Das escolas, com alunos
ameaçando os professores. Da falta de escola. Dos meninos malabaristas dos
sinais, lavando os vidros do carro. Das filas dos hospitais. Das meninas
prostitutas da Avenida Atlântica ou em qualquer cantão por aí. São tantas as
barbáries que me perco tentando enumerá-las.
E aí,
volto ao começo desse texto, e vejo a falta que faz um líder capaz de apertar a
mão de seu arqui-inimigo e, com ele, tentar encontrar uma solução. Por
enquanto, os arqui-inimigos estão ganhando e transformando todos nós, aos
poucos, em rinocerontes.
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