terça-feira, 5 de novembro de 2013

HAJA HOJE PARA TANTO ONTEM



Cinco de maio de dois mil e treze foi o dia em que ele nasceu. De novo. Era um domingo de céu azul radiante como são os céus de outono.

Depois de  uma pedalada de cinquenta e três quilômetros na praia, ele se sentiu cansado e um pouco enjoado. Na piscina, relaxou. Foi quando o coração  começou a doer como nunca havia doído até então. A respiração ficou pesada e cada vez era mais difícil inspirar o ar para os pulmões. Um suor viscoso cobriu rapidamente todos os poros. A pressão ficou muito baixa, a uma linha de separação de um desmaio. A pele muito pálida. Os lábios arroxeados.

Telefone. Emergência. Um-nove-três. Ambulância. Paramédicos. Medo. Injeção. Sirene. Sinal vermelho. Carros na  frente. Ninguém dá passagem. Verde. Sirene. Hospital. Medo. Cirurgia. Stent. Medo.

Naqueles dias de desamparo no hospital gelado e paredes sem cor, eu me lembrava com constância desse verso de Vinícius, como que buscando um mantra para me manter sã:  Eu morro ontem/ Nasço amanhã/ Ando onde há espaço / Meu tempo é quando.

Sempre confiei no tempo, sabia que era preciso viver um dia depois do outro. Uns dias melhores, outros nem tanto. Mas um dia depois do outro. 

Cinco de novembro de dois mil e treze. Seis meses. Reabilitação completa. Noventa de colesterol. Três quilômetros na esteira. Musculação. Dois mil metros na piscina. E muito mais pela frente.

Agora meu mantra é Leminski e me sinto tão bem: Haja hoje para tanto ontem. 

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

NÓS QUE AQUI ESTAMOS, POR VÓS ESPERAMOS




Um dos passeios que meu pai gostava de fazer comigo, quando criança, era nos distritos de Teresópolis, onde morávamos. Não sei como são hoje essas regiões, mas na época, lá se vão trinta e tantos anos, eram pequenas vilas agrícolas, com casinhas simples distantes umas das outras, ruas de terra batida, muito verde e uma igrejinha com o cemitério ao fundo.

Sempre entrávamos nas igrejas, rezávamos e íamos ao cemitério, andávamos entre as sepulturas, “não pisa nelas porque é desrespeitoso com o morto”, papai me dizia. E eu as contornava, lia os nomes nas lápides, as frases em homenagens aos que se foram.

Papai fotografava os cemitérios pequeninos e me ensinou que são lugares de um silêncio profundo e de paz. Nunca tive medo, sempre me sentia bem indo com eles a esses passeios, que aconteciam aos domingos pela manhã. E gostava de olhar pelo visor da Rolleiflex dele, entender o ângulo que ele estava buscando, como regulava o diafragma para receber a luz que precisava. Depois, eu ficava no quarto escuro com ele, vendo as imagens serem reveladas e  surgirem misteriosamente no papel mergulhado na bandeja de revelador e fixador.  Lamento tanto não ter essas fotografias, que se perderam com o tempo.

Esses programas eram feitos sob o céu azul intenso, o verde escuro das árvores colorido pelos raios de sol, a Mulher de Pedra ao fundo ou outra montanha, dependendo do lugar onde estivéssemos.  Eu, pequena e magrinha, cabelo bem curtinho, com calça jeans boca de sino, bamba e um suéter vermelho de lã com coelhinhos brancos bordados. Essa é a foto que está no porta retratos das minhas melhores lembranças.

Ontem fui ao cemitério São João Batista para o velório da tiavó, que partiu às vésperas do aniversário de 96 anos.

Entrei pela alameda principal e andei até o cruzeiro, vendo os nomes dos desconhecidos que ali estão por toda uma eternidade, calculando as idades que tinham, lendo as homenagens que foram escritas nas lápides e me admirando com as esculturas de anjos, lindas, que enfeitam os túmulos dos que penso ter sido mais endinheirados. Nos pequenos cemitérios atrás das igrejinhas de Teresópolis, não havia esculturas de mármore. Eram todas muito simples, enfeitadas com vasos  ou canteiros de flores.

Apesar de ser no meio do tumultuado Botafogo, o silêncio profundo do São João Batista me deu uma paz imensa.  Do cruzeiro, segui por uma rua estreita, tomando cuidado para não pisar nas sepulturas, como papai havia me ensinado, até chegar a um muro branco cheio de caixas onde guardam restos mortais. São muitas caixas para formar uma muralha tão extensa, nunca havia reparado nisso.

O Corcovado, visto daquela perspectiva, com o Cristo abrindo seus braços e acolhendo a todos, dá uma linda foto.  A foto é de Fábio Motta, da Agência Estado.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

SOMBRAS




ANTIGAMENTE EU ERA ETERNA









“Abrindo um antigo caderno 
foi que eu descobri:
 Antigamente eu era eterno”.

Plagio Leminski quando folheio o velho álbum de fotografias e dou de cara com alguém que fui.

O tempo é um mistério que não há física quântica que resolva. Sinto muito, Einstein ou Hawking, o tempo é indecifrável. Ele passa, simples assim, passa, sem dar muitas explicações.

Tem quem ache que passa rápido, outros, que demora.  Tem gente que sabe que o tempo cura dores e feridas do corpo ou da alma.  

O tempo voa, é o que eu penso. 

De uma hora para a outra, estamos em outubro. Quase 2014.

De uma hora para a outra, tenho rugas ao redor dos olhos, onde antes era uma pele lisinha. 

De uma hora para a outra, aparecem fios brancos na cabeleira, que cismam em crescer rebeldes e mais  grossos ainda, se destacando entre os pares castanhos.

De uma hora para a outra, sinto que meus joelhos, que antes passavam despercebidos, doem quando corro.

De uma hora para a outra, a dentista oferece promoção para clarear os dentes. E quem sabe depois eu me animo para um preenchimento ao redor da boca?, brinca por aí.

De uma hora para a outra, vou ao médico e ele pede marcadores a mais no exame de sangue.  

De uma hora para a outra, vejo a fotografia amarelada da minha mãe com a minha idade e me sinto uma cópia dela, com roupas mais modernas. Quando eu era eterna, isso era quase impossível.  Eu era tão diferente de tudo o que havia por aí. 

Antigamente eu era eterna.