Nina
dorme no sofá do escritório, banhada pelo sol que atravessa a janela. Não se importa com o
barulho da serra que corta o encanamento ao lado, a obra que se arrasta por meses
e suja de pó de tijolo os meus móveis. As marteladas ácidas nos meus ouvidos.
Mas
Nina dorme, embora o rádio esteja nas alturas em algum dos apartamentos da
vizinhança, e um rock metaleiro se misture ao som do jornal da TV na hora do
almoço. Um bebê faz manha e grita. Nós somos só três janelinhas nesse mundaréu
de buracos de ar condicionado, eu digo a ela, que nem me dá atenção. Ela abre os olhos amendoados bem
devagar, os cílios ruivos estão pesados, ela acabou de comer, não é hora de conversar,
ela deve pensar. E se entrega aos cochilos.
O
sol que atravessa a janela lambe o pelo dourado. Um pássaro rasga o céu lá fora. Uma paz azul
no céu de mudança de estação. As orelhas
de Nina são desmilinguidas, o que lhe dá um aspecto de bambi. A rendição ao
sono, à leseira do calor. Os bigodes finos curvados para baixo, prata, a
língua cor de rosa que os lambe. A ponta preta do focinho treme como se
estivesse num sonho distante de cheiros. Estirada no sofá, suspira. Um sonho de
mato imaginário porque é de mato que ela gosta, é qualquer capim, uma planta
dessas que nascem aos pés das árvores na calçada. As pernas cruzadas embaixo do
que chamaria de queixo se houvessem queixos em cachorros.
Nina
sonha e é só isso, um sonho com bolas de tênis, brinquedos de morder, um mundo
curto, de parques cheios de frutos arredondados, os frutos que eu jogo longe
para ela correr, pegar e voltar com pressa para repetir o movimento vezes
seguidas, a corrida que levanta a terra do chão e cria uma espécie de névoa no caminho. Não chove há semanas, a grama amarelou e a areia deixa Nina com uma camada
a ser lavada, depois, pela toalha úmida. Os dias se repetem: o sol, a bola, o
pó, o tanque, o sofá.
É
difícil olhar daqui da mesa enquanto escrevo, o sol derramado no chão cobrindo
Nina, e não ver o Bart na mesma posição, nele as pernas curtas para aquele corpo alongado, a pata grande de
cavador de lontras.
Antes,
era nele que o sol se derramava, era ele quem sonhava depois do almoço deitado
no sofá enquanto eu escrevia. Eu estranho ser outro o cachorro agora, ser
outro o tempo. Eu sou outra. É outubro, tudo está tão mudado desde junho, quando Bart se
foi. E é tudo tão igual.
Os
passeios, então, eram mais curtos, não se tinha a intensidade das corridas e
dos saltos com obstáculos de Nina, se
respeitava a velhice naquela época, se
andava pouco, uma volta pelo quarteirão, mas se servia a mesma água de coco.
O carrinho verde e amarelo na esquina, o velho que vende o coco, abre a casca e
raspa a gosma, dá para o cachorro. A loja fechada com o tapume, os cartazes anunciam
uma mãe de santo e o encontro de orixás. A praça era igual e também a terra a
sujar a roupa, os pés, as patas. E é tudo tão diferente.
Em
Campo Grande, ano passado, no dia das crianças,
Nina acabava de nascer. Devia ser clarinha, pelo ralo na nuca, meiga, eu não conheci, não
tenho registros. Seria logo depois
abandonada num terreno qualquer. Bart, ano passado, no dia das crianças, ganhou
um brinquedo comestível, era o presente desse dia, e ele o devorava como fazem
os cachorros e eu sempre lembro do Bart quando dou coisas para a Nina brincar.
Queria que essas crianças existissem ao mesmo tempo, no mesmo lugar, na minha
casa. Com o sol lambendo o pelo enquanto sonham o sonho de mato.
E
daí o tempo foge da gente e é quase verão.
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