Então, agora essa é sua nova casa. Mal ela acabou de dizer isso e
eu corri. Aquele chão liso e cheiroso, de retângulos de madeira, bem diferente dos
de antes, de cimento e pó de barro, a poeira que nunca sai da nossa pele e deixa tudo áspero, o pelo, o nariz, até dentro das
orelhas, com um cheiro não tão bom quanto o que eu tenho agora, depois que ela me enfiou debaixo d'água, me esfregou e eu lambi o sabão.
Naquela hora que ela disse então, agora essa é sua casa, eu corri,
vi tudo rápido e voltei. Ela estava na porta. Corri de novo. Ela me olhava. Escorreguei numa faixa comprida
e colorida que ela tem entre o que chama
de sala e o que chama de quartos. Essa faixa tem uma textura grossa, se eu
soubesse das coisas diria que tem trama intercalada de fios e uns fiapos mais
robustos nas pontas, e essa faixa
colorida é muito boa para cavar, me encolher e tirar umas sonecas, descobri
depois. Gosto de desfilar ali também.
Mas primeiro só fiz correr. E pular. Pulei nela. Você vai ficar
comigo mesmo, quis perguntar. Ela me acariciou a cabeça. Vai? E corri. Vi um
espaço quadrado, com uma mesa e uma cadeira vermelha. Dizem que não vejo cores,
mas vejo tudinho. Vermelha. Vi um sofá cinza perto da janela e noutro dia eu
subi nele, nas costas dele, e fui ver lá fora e ela me deu uma bronca, disse
ei, que isso, aí não, numa voz tão estranha que fiquei com medo. Em caso de
dúvida, e eu tenho muitas dúvidas, não
vou subir e olhar dessa coisa que chamam de janela. Isso não é pra mim, eu sei,
mas fazem uns barulhos lá fora que eu fico curiosa, mas não é pra mim, eu sei e não quero despertar essa voz que diz não. Nesse quadrado, que é o quarto, aprendi depois, tem um móvel engraçado, alto,
cheio de tábuas, e dentro dos buracos das tábuas, tem uns negócios menores que
ela pega, abre, fica parada olhando, e depois de um tempão fecha. Que é, Nina, nunca viu? São livros. Ah. Ela tem montes de livros e esses eu não posso mastigar, já fui advertida. Aqui não. E além
de livros, uns bonequinhos fofos moram
ali. Ficam parados, não correm nem pulam. São pequenos, cabem bem na minha boca, são meio arredondados e tem umas pontinhas macias. Eu tentei pegar, devem ser ótimos para esses dentes lá de trás que ainda estão pequenos e coçam. Ela disse que são bonequinhos de Game of Thrones e que isso eu não posso
pegar mesmo, acentuou o mesmo. E me deu uma vaquinha que apita, toda molinha,
de lã. Eu gosto. Mas os bonequinhos são mais legais, especialmente o que tem
asas enormes, que ela diz que tem um nome: Drogon.
Eu não tenho asas, mas na praça tem uns bichos esquisitos meio
pretos, meio azuis, de bico escuro,
fazem um barulho que não sei fazer, parece que é purruc purruc, e ficam comendo areia, aí, quando eu chego
perto, eles saem para o alto. Voaram, ela diz. Eu pulo atrás deles, mas eles vão alto.
Esquisito. Eu não sei fazer isso. Na
praça tem lago, eu quis beber água dali mas ela não deixou. Lá embaixo na água
tem uns outros bichos estranhos, cor de laranja, um dia ainda vou mastigar e
ver se é bom para os dentes. Se ela deixar, ela é esperta, me segura. Eu gosto das
plantas e árvores, isso é bem legal. E aí a gente passeia pela grama, é um mundo de cheiro: de comida, de pipoca, de cerveja, de xixi de passarinho, de cachorro, de gato, de rato, de gente, de cigarro, de pão, de formiga, de joaninha, de fruta da amendoeira, de peixe da feira que foi na sexta, de chuva que ainda não secou, da maresia que vem com o vento... um cheiro do mundo.
A minha casa é cheia de fotos do meu irmão e eu herdei a cama dele. É boa, macia, cheia de carrinhos e ônibus de Londres, mas a dela é melhor. Ela diz que ele era um grande cachorro, que virou estrelinha e está no céu dos cachorrinhos, junto com a mãe dela, o pai, o irmão e a amiga de infância, a Ana, e que São Francisco está olhando pelo Bart e protegendo a todo mundo, a mim também, mas na foto eu só vejo um cara baixinho, preto, com um certo sorriso debochado na boca, um orelhão comprido e me pergunto: como alguém pode ter patas tão pequenas?
Ela, essa moça que me disse que agora é minha mamaca, levou horas para se decidir. Ficou comigo no colo e achei que
ela tinha a cara boa, dei beijos e
tentei conquistar. A gente tem que fazer assim: pegou no colo, dá beijo; botou
no chão, sobe no colo; não deixa subir, se estica e faz charme, mexe nela com a patinha, faz cara de pobrezinha, que ela vai
pegar. E aí dá beijo. Fiz isso umas vezes, eu me repito bastante. Deu certo. Ela demorou, gostou de um gorducho café com leite que estava
lá junto comigo, mas eu fiz charme, charme, charme, pata, pata, pata, beijo, beijo, beijo. E aí ela decidiu.
Vamos
embora, ela disse no dia que me conheceu, essa coisa amarrada no meu peito e ela segurando uma
cordinha, que às vezes eu tenho que morder, e andamos, andamos, passamos numa
loja, compramos coisas chamadas cobertor, comida, sabonete, pratinhos e um biscoito do qual ainda
não gosto. O cobertor é de figurinhas de elefantes e rinocerontes, sol e nuvens, azulzinho e amarelo. Eu pedi colo, fiquei cansada, e no fim chegamos.
E foi aí que ela disse,
então, agora essa é sua casa, foi quando eu corri, e vi o quarto, e corri. E no
outro quarto vi a cama dela, e subi, e ela disse não, mudando de voz, eu não entendi
direito e subi, e ela disse não, e eu desci, mas subi de novo, e estamos assim,
eu subindo e ela dizendo não, mas subo, e às vezes ela faz que nem vê e deita
do meu lado e diz minha menina tão pequenina vai ser bailarina mas depois
esquece todas as danças e também quer dormir como as outras crianças.
Eu não entendo o que é bailarina, mas eu fico
toda molinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário