quarta-feira, 11 de outubro de 2017

AS MINHAS CRIANÇAS




Nina dorme no sofá do escritório, banhada pelo sol que  atravessa a janela. Não se importa com o barulho da serra que corta o encanamento ao lado, a obra que se arrasta por meses e suja de pó de tijolo os meus móveis. As marteladas ácidas nos meus ouvidos.

Mas Nina dorme, embora o rádio esteja nas alturas em algum dos apartamentos da vizinhança, e um rock metaleiro se misture ao som do jornal da TV na hora do almoço. Um bebê faz manha e grita. Nós somos só três janelinhas nesse mundaréu de buracos de ar condicionado, eu digo a ela, que nem me  dá atenção. Ela abre os olhos amendoados bem devagar, os cílios ruivos estão pesados, ela acabou de comer, não é hora de conversar, ela deve pensar. E se entrega aos cochilos.

O sol que atravessa a janela lambe o pelo dourado.  Um pássaro rasga o céu lá fora. Uma paz azul no céu de mudança de estação.  As orelhas de Nina são desmilinguidas, o que lhe dá um aspecto de bambi. A rendição ao sono, à leseira do calor. Os bigodes finos curvados para baixo,  prata, a língua cor de rosa que os lambe. A ponta preta do focinho treme como se estivesse num sonho distante de cheiros. Estirada no sofá, suspira. Um sonho de mato imaginário porque é de mato que ela gosta, é qualquer capim, uma planta dessas que nascem aos pés das árvores na calçada. As pernas cruzadas embaixo do que chamaria de queixo se houvessem queixos em cachorros.

Nina sonha e é só isso, um sonho com bolas de tênis, brinquedos de morder, um mundo curto, de parques cheios de frutos arredondados, os frutos que eu jogo longe para ela correr, pegar e voltar com pressa para repetir o movimento vezes seguidas, a corrida que levanta a terra do chão e cria uma espécie de névoa  no caminho. Não chove há semanas, a grama  amarelou e a areia deixa Nina com uma camada a ser lavada, depois, pela toalha úmida. Os dias se repetem: o sol, a bola, o pó, o tanque, o sofá.

É difícil olhar daqui da mesa enquanto escrevo, o sol derramado no chão cobrindo Nina,  e não ver o Bart na mesma posição, nele as pernas curtas para aquele corpo alongado, a pata grande de cavador de lontras.

Antes, era nele que o sol se derramava, era ele quem sonhava depois do almoço deitado no sofá enquanto eu escrevia. Eu estranho ser outro o cachorro agora, ser outro o tempo. Eu sou outra. É outubro, tudo está  tão mudado desde junho, quando Bart se foi.  E é tudo tão igual.

Os passeios, então, eram mais curtos, não se tinha a intensidade das corridas e dos saltos com obstáculos de Nina,  se respeitava  a velhice naquela época, se andava pouco,  uma volta pelo quarteirão, mas se servia a mesma água de coco. O carrinho verde e amarelo na esquina, o velho que vende o coco, abre a casca e raspa a gosma, dá para o cachorro. A loja fechada com o tapume, os cartazes anunciam uma mãe de santo e o encontro de orixás. A praça era igual e também a terra a sujar a roupa, os pés, as patas.  E é tudo tão diferente.

Em Campo Grande, ano passado, no dia das crianças,  Nina acabava de nascer. Devia ser clarinha, pelo ralo na nuca, meiga, eu não conheci, não tenho registros.  Seria logo depois abandonada num terreno qualquer. Bart, ano passado, no dia das crianças, ganhou um brinquedo comestível, era o presente desse dia, e ele o devorava como fazem os cachorros e eu sempre lembro do Bart quando dou coisas para a Nina brincar.

No primeiro dia das crianças, Bart tinha pouco mais que o tamanho de um tênis e destruía caixas de papelão que chegavam com as frutas. Eu não tinha câmera no celular e as imagens são só lembranças não documentadas e uma vontade de  dar colo de novo para aquele rolinho de pelo preto, minha minhoca maluca, como eu o chamava.  Em outubro deste ano, Nina é maior que um tênis e também destrói as caixas de papelão com a mesma fúria de Bart. E eu filmo e fotografo a vida inteira dela.

Queria que essas crianças existissem ao mesmo tempo, no mesmo lugar, na minha casa. Com o sol lambendo o pelo enquanto sonham o sonho de mato.

E daí o tempo foge da gente e é quase verão.





quinta-feira, 3 de agosto de 2017

NINA MOLINHA




Então, agora essa é sua nova casa. Mal ela acabou de dizer isso e eu corri. Aquele chão liso e cheiroso, de retângulos de madeira, bem diferente dos de antes, de cimento e pó de barro, a poeira que nunca sai da nossa pele e deixa tudo  áspero, o pelo, o nariz, até dentro das orelhas, com um cheiro não tão bom quanto o que eu tenho agora, depois que ela me enfiou debaixo d'água, me esfregou e eu lambi o sabão.

Naquela hora que ela disse então, agora essa é sua casa, eu corri, vi tudo rápido e voltei. Ela estava na porta. Corri de novo.  Ela me olhava. Escorreguei numa faixa comprida e colorida que ela tem entre o que chama de sala e o que chama de quartos. Essa faixa tem uma textura grossa, se eu soubesse das coisas diria que tem trama intercalada de fios e uns fiapos mais robustos nas pontas,  e essa faixa colorida é muito boa para cavar, me encolher e tirar umas sonecas, descobri depois. Gosto de desfilar ali também.

Mas primeiro só fiz correr. E pular. Pulei nela. Você vai ficar comigo mesmo, quis perguntar. Ela me acariciou a cabeça. Vai? E corri. Vi um espaço quadrado, com uma mesa e uma cadeira vermelha. Dizem que não vejo cores, mas vejo tudinho. Vermelha. Vi um sofá cinza perto da janela e noutro dia eu subi nele, nas costas dele, e fui ver lá fora e ela me deu uma bronca, disse ei, que isso, aí não, numa voz tão estranha que fiquei com medo. Em caso de dúvida, e eu tenho muitas dúvidas,  não vou subir e olhar dessa coisa que chamam de janela. Isso não é pra mim, eu sei, mas fazem uns barulhos lá fora que eu fico curiosa, mas não é pra mim, eu sei e não quero despertar essa voz que diz não. Nesse quadrado, que é o quarto, aprendi depois, tem um móvel engraçado, alto, cheio de tábuas, e dentro dos buracos das tábuas, tem uns negócios menores que ela pega, abre, fica parada olhando, e depois de um tempão fecha. Que é, Nina, nunca viu? São livros. Ah. Ela tem montes de livros e esses eu não posso mastigar, já fui advertida. Aqui não. E além de livros,  uns bonequinhos fofos moram ali. Ficam parados, não correm nem pulam.  São pequenos, cabem bem na minha boca, são meio arredondados e tem umas pontinhas macias. Eu tentei pegar, devem ser ótimos para esses dentes  lá de trás que ainda estão pequenos e coçam. Ela disse que são bonequinhos de Game of Thrones e que isso eu não posso pegar mesmo, acentuou o mesmo. E me deu uma vaquinha que apita, toda molinha, de lã. Eu gosto. Mas os bonequinhos são mais legais, especialmente o que tem asas enormes, que ela diz que tem um nome: Drogon.

Eu não tenho asas, mas na praça tem uns bichos esquisitos meio pretos, meio azuis,  de bico escuro, fazem um barulho que não sei fazer, parece que é purruc purruc,  e ficam comendo areia, aí, quando eu chego perto,  eles saem para o alto. Voaram, ela diz. Eu pulo atrás deles, mas eles vão alto. Esquisito. Eu não sei fazer isso.  Na praça tem lago, eu quis beber água dali mas ela não deixou. Lá embaixo na água tem uns outros bichos estranhos, cor de laranja, um dia ainda vou mastigar e ver se é bom para os dentes. Se ela deixar,  ela é esperta, me segura. Eu gosto das plantas e árvores, isso é bem legal. E aí a gente passeia pela grama, é um mundo de cheiro: de comida, de pipoca, de cerveja, de xixi de passarinho, de cachorro, de gato, de rato, de gente, de cigarro, de pão, de formiga, de joaninha, de fruta da amendoeira, de peixe da feira que foi na sexta, de chuva que ainda não secou, da maresia que vem com o vento... um cheiro do mundo.

A minha casa é cheia de fotos do meu irmão e eu herdei a cama dele. É boa, macia, cheia de carrinhos e ônibus de Londres, mas a dela é melhor. Ela diz que ele era um grande cachorro, que virou estrelinha e está no céu dos cachorrinhos, junto com a mãe dela, o pai, o irmão e a amiga de infância, a Ana, e que São Francisco está olhando pelo Bart e protegendo a todo mundo, a mim também, mas na foto eu só vejo um cara baixinho, preto, com um certo sorriso debochado na boca, um orelhão comprido e me pergunto: como alguém pode ter patas tão pequenas?

Ela, essa moça que me disse que agora é minha mamaca, levou horas para se decidir. Ficou comigo no colo e achei que ela tinha a cara boa,  dei beijos e tentei conquistar. A gente tem que fazer assim: pegou no colo, dá beijo; botou no chão, sobe no colo; não deixa subir, se estica e faz charme, mexe nela com a patinha, faz cara de pobrezinha, que ela vai pegar.  E aí dá beijo. Fiz isso umas vezes, eu me repito bastante. Deu certo. Ela demorou, gostou de um gorducho café com leite que estava lá junto comigo, mas eu fiz charme, charme, charme, pata, pata, pata, beijo, beijo, beijo. E aí ela decidiu.

Vamos embora, ela disse no dia que me conheceu,  essa coisa amarrada no meu peito e ela segurando uma cordinha, que às vezes eu tenho que morder, e andamos, andamos, passamos numa loja, compramos coisas chamadas cobertor, comida, sabonete, pratinhos e um biscoito do qual ainda não gosto. O cobertor é de figurinhas de elefantes e rinocerontes, sol e nuvens, azulzinho e amarelo. Eu pedi colo, fiquei cansada, e no fim chegamos. 

E foi aí que ela disse, então, agora essa é sua casa, foi quando eu corri, e vi o quarto, e corri. E no outro quarto vi a cama dela, e subi, e ela disse não, mudando de voz, eu não entendi direito e subi, e ela disse não, e eu desci, mas subi de novo, e estamos assim, eu subindo e ela dizendo não, mas subo, e às vezes ela faz que nem vê e deita do meu lado e diz minha menina tão pequenina vai ser bailarina mas depois esquece todas as danças e também quer dormir como as outras crianças. 

Eu não entendo o que é bailarina, mas eu fico toda molinha.





segunda-feira, 12 de junho de 2017

TEMPO DA DESPEDIDA





Sossega, é hora de entender o tempo do encontro e o tempo da despedida. Percebe cada coisa a seu tempo. Lembra: o tempo vai curar.

Não deu tempo.

Não deu tempo de um último beijo. Na hora a gente não sabia que seria o último. E não houve o  beijo, o carinho final.  Foi assim, fica despedaçado. Abrupto.  Um susto. Que não passa, não se sai dele. Ninguém diz acorda, foi um sonho ruim.

É o tempo da despedida.

O tempo é o caos. Não há ordem, a gente é que pensa que há. Não há, aceita que não. E sossega. Dorme um pouco.

É só mais um domingo que vai ficar perdido no tempo, um dia você vai se lembrar daquele domingo de dois mil e dezessete, em junho, sem tanta dor, um domingo distante.  Vai curar. Eu sei que vai, mas até lá como é que se faz?

E logo um domingo.   Com ele não tinha esse problema de melancolia. Não aos domingos, nem em dia nenhum.

Era acordar preguiçoso, correr pela casa em sinal de alegria e pronto.

Isso, correr pela casa em sinal de alegria. Quando  jovenzinho. Até noutro dia. Agora, no tempo da velhice, era dia de virar de barriga para cima e a coçadinha. Não existe mais o agora, o tempo levou. Será que é o sempre o que devo dizer?

Domingo era um passeio maior, sem hora de voltar, o dia de  coco aberto e daquela carninha macia. De raspar os dentes na borda da casca. De olhar o horizonte. Dia de encanto.

De encantamento, como o domingo que o conhecemos, tão frágil, pequenino, desnorteado, chamado de pateta por ser boboca, por querer mamar e não se defender.

Sossega, não pensa nisso agora.

Alguns domingos, aqueles diluídos na infância, eram para cavar, fuçar buracos até a quentura desaparecer e partir para outro buraco em seguida. E outro. A praia feito a superfície da lua. Então, a água que subia e molhava a barriga, a água salgada que ele não entendia aquele sal todo, a areia molhada que entrava entre os dedos.

Outros domingos eram para correr no parque, andar na trilha, perseguir gatos, latir quando subiam em árvores. Era dia de latidos. Mas latidos eram todos os dias. O barulho do elevador. A campainha. O interfone.  Todos os dias. Pelo coco, pelo almoço e o jantar, ah os caquis vermelhos, aquele melão. Eram tantos  os pedidos e protestos.

Sossega, não lembra disso agora. A gente não controla nada, entende.

Havia os domingos de quietude, de ouvir a chuva cair, de se enroscar e tirar um cochilo maior, de procurar as migalhas sob a mesa. Era dia de deitar no sofá, entre as pernas, enquanto se lia o jornal.   Os afagos no sentido contrário ao pelo, a maciez atrás das orelhas.

Embora isso fosse todos os dias. O tempo todo, o cochilo, as migalhas, o sofá, os afagos.

Depois o banho, sagrado aos domingos. Escovar dentes, limpar ouvido, vai lá, pega sua toalha.  E não lambe o sabonete. A gente é feito de rituais, a gente e os bichos, se  preparar para a semana, quase um ir à missa Porque afinal era domingo. E não lambe o sabonete.

A música sempre. Às vezes a dança. Cabecinha repousada no meu ombro, minha mão segurando a coluna, a outra servindo como apoio nas pernas. E vinha uma lambida, assim de repente, do nada, a lambida. Roubava um beijo, era o que fazia. Não só aos domingos. O tempo todo.

Sossega, para de lembrar.  Dorme um pouco.

Acalma, vive o tempo da perda, da casa vazia, dos silêncios, da falta de patinhas a arranhar o chão.

É tempo de imaginar o céu dos cachorrinhos, cheio de árvores e plantas, água limpa correndo devagar, o sol que brilha e esquenta, mas não muito forte que é para não queimar as almofadinhas. Lá, nesse céu dos cachorrinhos, não existem raios nem trovões, ninguém solta foguetes. Não tem perigo. Não existe medo. A grama é bem verde para se esfregar, num canto tem areia para as escavações quase geológicas. É servido frango com arroz e cenoura, e de sobremesa uma tangerina. Às vezes tem macarrão. Lá, não se usa coleira, é correr sem pensar em voltar. E depois tirar o sono dos justos. E de noite, nem te conto, mas de noite tem mil estrelinhas. E você é uma delas, a gente vê daqui.

A gente sempre soube que existia esse céu, que lá os cachorros são felizes, mas não ia visitar.

Agora vamos. 

Agora, não. Sempre.