...
Agora vou até o mar. O cachorro não sossega, corre, o
tamanho tão pequeno das patas dificulta
o movimento quando o terreno não é sólido. Mas ele gosta, fuça, cava buracos. É
como eu, sente os cheiros, a areia fria e úmida. Gosto das pegadas. Os pezinhos
afundados. Queria tatuar no ombro. Um dia.
Deixo a onda vir, molhar as canelas, inundar o
bicho.
Falta um tanto assim para a lua ficar bem redonda,
está quase. Um certo véu em torno dela, não diria que é neblina. Neblina acontece
com trinta e oito graus? É a marca do termômetro espetado naquele
quarteirão. Apesar do horário. Um veranico de repente, outro dia mesmo estava
fresco. Outro dia mesmo você aqui.
Antes, muito antes, atravessei aquela rua onde sempre
te encontrava. Foi por acaso, quando reparei estava ali, naquela rua. O
letreiro do bar vagabundo anunciando a cerveja, aquele ponto de encontro no
meio do concreto quente, aquele vermelho do cartaz, as letras brancas. Uns
sujeitos bebendo na calçada, marca de suor embaixo do braço, a comida
engordurada no balcão, os copos de geleia, o cheiro azedo de cerveja quente e
fritura velha. Te disse que sou como o cachorro, farejo.
E no entanto aquilo tudo. Aquela rua, meu carro
parado, você entrava, me beijava, passava o cinto de segurança no peito. E
seguíamos. Eu sempre segurava a sua mão e dava um beijo, como a pedir uma
espécie de bênção. Seria? A mão macia, grande, que segurava a minha perna,
gosto da sua coxa, você dizia enquanto sentia meu músculo, gosto da sua mão. Agora
não, a dorzinha de engolir o choro presa
na garganta. Eu ando meio rouca, sabe?
O que eu queria era voltar no tempo, só um pouquinho, um outro dia, e te encontrar
ali, naquele pedaço de mundo, resgatar você, te trazer ao mar, um mergulho.
E não, na vida real o tempo anda para a frente, é você
quem retorna para um ponto no início, quer parar o tempo como se fosse
possível, parar o tempo para entender tudo. Tudo o que? As
respostas confusas. Não me dou bem com respostas confusas, elas se perdem sem saber para onde ir, as respostas.
Na vida real, da qual a gente não se esconde - e é esse seu erro, pensar que dá para se esconder, camuflar, se distrair - na rua do bar do letreiro vermelho, o sol queimou a pele, a roupa empapou, o sapato
cismou em roçar o pé, a falta de band-aid. A dorzinha quase.
E agora a espuma do mar, os prédios lá longe, as luzes
pontilhadas. Os carros. Faróis acesos. Bicicletas. Outros cachorros.
Pombos. A lua quase.
Antes, naquele ponto em frente ao bar, um pouco depois
do posto de gasolina, a calçada fez uma curva. Nunca tinha reparado na curva.
Não importa, o que eu reparo não conta. E então, escondido entre postes, um
emaranhado de fios e uma amendoeira, o Cristo. Lá no alto, pairando,
despercebido. Aí, naquele ponto, a
dorzinha passou.
A foto. O choro. O sol.
Agora não. O véu da lua. Vento nenhum. Os trinta e
oito graus. O cachorro cansado. Língua de fora. A espuma branca. Uma espiga de
milho para matar a fome. O mergulho. A dorzinha ressurge na garganta. A lua
quase.