terça-feira, 6 de outubro de 2015

SHOTS

Vitrine em Paris, próxima à Sacre Coeur


 Em Paris, cada cachorro tem seu mendigo, a mulher percebe isso.  Baguette, uma vira-lata marrom de pelo grosso e comprido, mais escuro do que deveria por causa da sujeira, é dona de Christina, uma romena de pele muito clara, mas também mais escurecida do que deveria por causa da sujeira.  É bastante encardida a rua do Quartier-Latin onde vivem.

Christina tinha dez anos quando seus pais, ainda estudantes, se juntaram às hordas que queriam o fim do regime liderado por Ceasescu. Foram batalhas violentas, mais de mil sucumbiram. Massacrados os pais, a menina foi parar num orfanato, com outros filhos de gente que lutou pelo fim do comunismo, coisa que ela nunca entendeu muito bem como funciona. Bom é viver aqui, em frente à Saint Julien, diz e sorri, os dentes estragados pela nicotina e pelo uso de drogas.

Assim que seus seios despontaram, sofreu estupros diários. O vigilante da casa dos órfãos não conseguia se controlar. A direção fazia vista grossa, quem há de defender esses merdinhas, eles que se virem, ouvia. Os infernos são tão variados e ela os experimentou todos, depois, quando conseguiu escapar daquele, lá pelos quatorze anos.

De Bucareste, perambulou por alguns países do leste, passou por Budapeste, Belgrado, Sófia, Sarajevo, Praga. Fez shows de strip-tease, acabou na prostituição. Tinha corpo que despertava o desejo dos homens, pernas compridas e bem torneadas, peitos fartos e duros, era quase um destino. Amigas ocasionais encontraram maridos e ficaram bem de vida, mas aquilo não era para ela. Sente nojo até hoje quando se lembra das noites do orfanato e dos muitos homens com quem se deitou. Dos infernos que viveu.

No começo dos anos dois mil, conseguiu entrar na França depois de um tempo na Suíça e acabou em Paris. Lembra a minha Bucareste, tantas luzes, aqui é o paraíso.

Sua voz de soprano é seu ganha pão. Com um microfone e uma caixa de som acoplada em rodinhas, mais Baguette na coleira, percorre as estações. De cor sabe as canções que aprendeu nas aulas de canto, quando tinha dez anos, quando seus pais eram vivos.

Um dia conheceu Paul, de olhos tristes e um passado de que não fala muito.  Além de Baguette, é com Paul que divide seu papelão, a manta quadriculada, os pratos de ágata, os talheres de latão e a garrafa térmica com chá. Vien, Baguette, vien, ela chama a vira-lata e oferece uma quentinha com restos do frango que arrumou.

A mulher passa naquela hora, se enternece com elas, desce a escada do metrô.

***

Em 1960 e tantos, Per tinha dezesseis anos e saiu de Oslo, sua terra natal. Nada  acontecia ali, a não ser neve e frio e alguns meses bons, quando o sol ficava no alto até quase a meia noite e se tocava música na rua naquele lusco-fusco. Mas aquilo era pouco, muito pouco para seus sonhos e um dia Per se aventurou a ir para Londres, o centro do universo, pensava.

Mochila nas costas, a guitarra na caixa, ia ser músico. Estava decidido. Deixou o cabelo crescer, a despeito da contrariedade do pai, que o queria advogado como ele. Não criei meu filho único para sair por aí, ou volta ou te deserdo, o pai ameaçou.

Per nunca voltou para saber se havia cumprido a promessa. E se era vivo ou não. Que fim levou sua mãe. Nunca quis saber, não havia nada a tratar com nenhum dos dois. Com o tempo, virou Paul, como um de seus ídolos. Ácido, doideiras, as coisas acontecem sem a gente perceber, ele acha.

Quando viu, estava em São Francisco, vivendo em uma comunidade que plantava sua própria comida, além da própria erva. Uns criavam os filhos de outros e ele criou algumas crianças.  Fez protestos contra a guerra da Coreia, ergueu cartazes, saiu em marchas. Fez o mesmo contra a guerra da Vietnam. E por fim a do Golfo, mas aí se cansou. As coisas não mudam, é guerra atrás de guerra, isso não tem fim.

Ganhou o mundo de novo. Perambulou pela Ásia e África. Um dia foi para Paris atrás de Camille, uma francesa por quem se apaixonou nos campos de refugiados da Somália, onde foram voluntários. Mas as coisas não acontecem como nos sonhos, Paul aprendeu isso quando Camille o largou por outro e seguiu seu rumo. Dizem que foi para a Índia. E Paul ficou ali, sozinho em Paris, até conhecer Christina.

Ele toca Bob Dylan no metrô. A linha 1 é a preferida, dá muito movimento. A mulher que acabou de ver Baguette, a vira lata, lá fora, entra no trem e observa a cabeleira cheia de fios brancos presa num rabo de cavalo de Paul, as rugas que tomam o rosto, a guitarra atravessada no peito, a gaita presa no pescoço, as unhas crescidas para facilitar o manuseio das cordas.  Blowing in the wind, the answer is blowing in the wind.

***

Em Abu Dhabi de vez em quando sopra um vento quente que desarruma os cabelos. Há certa vantagem no véu, pensa a mulher, que não o usa, é ocidental, não precisa. O sol se põe e vem um lusco fusco como na Oslo de Per.  As partículas de areia do deserto flutuam no ar. Ela entra no mercado, um oásis de frescura, e pega o elevador. 

A porta quase fechava quando uma mulher vestida de preto, o rosto coberto, luvas pretas, apenas os olhos expostos, ganha o cubículo. Olhos arredondados, repuxados no canto. A mulher e suas quatro crianças de pele morena. Um cachorro marrom, grande, pelo curto. Tem o olhar carente dos cachorros. Não lembra Baguette. Dois meninos de uns dez, doze anos, e duas meninas bem menores. Ela, a mulher ocidental, pode ver a penugem dos garotos sob o nariz e nas costeletas, que seriam bastas dentro de mais alguns anos, a adolescência estava à beira.

Também mais um tempo e as meninas irão passar pelo ritual de retirada dos clitóris. É da cultura, dizem, e fecham os olhos para a mutilação. A mulher de preto, ali, ao lado da mulher ocidental, deve tê-lo enfrentado, deve ter sentido medo, chorado, sangrado, percebido o corpo cicatrizar e se rasgar de novo na noite de núpcias. As meninas irão passar por isso, fatalmente, como aconteceu um dia também com a avó, a bisa e todas as mulheres que formaram seu clã. Vão ganhar vestes iguais às da mãe para que não coloquem nenhum homem em tentação.  Depois, um dia, se casarão com alguém escolhido pelo pai. É tão certo quanto a oração que vai ser feita logo mais, com seu som melodioso.  

O fio branco do fone que conecta a mulher de preto ao Iphone traz o século vinte e um para aquela figura do século seis. A porta se abre e a mulher de preto sai com as crianças. O cachorro segue, abana o rabo, alheio aos pensamentos da mulher ocidental, que fica no elevador, observando os cinco sumirem num corredor cheio.



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