Vitrine em Paris, próxima à Sacre Coeur |
Christina tinha dez anos quando seus pais, ainda estudantes,
se juntaram às hordas que queriam o fim do regime liderado por Ceasescu. Foram
batalhas violentas, mais de mil sucumbiram. Massacrados os pais, a menina foi
parar num orfanato, com outros filhos de gente que lutou pelo fim do comunismo,
coisa que ela nunca entendeu muito bem como funciona. Bom é viver aqui, em
frente à Saint Julien, diz e sorri, os dentes estragados pela nicotina e pelo
uso de drogas.
Assim que seus seios despontaram, sofreu estupros diários. O
vigilante da casa dos órfãos não conseguia se controlar. A direção fazia vista
grossa, quem há de defender esses merdinhas, eles que se virem, ouvia. Os
infernos são tão variados e ela os experimentou todos, depois, quando conseguiu
escapar daquele, lá pelos quatorze anos.
De Bucareste, perambulou por alguns países do leste, passou
por Budapeste, Belgrado, Sófia, Sarajevo, Praga. Fez shows de strip-tease, acabou
na prostituição. Tinha corpo que despertava o desejo dos homens, pernas
compridas e bem torneadas, peitos fartos e duros, era quase um destino. Amigas ocasionais
encontraram maridos e ficaram bem de vida, mas aquilo não era para ela. Sente nojo
até hoje quando se lembra das noites do orfanato e dos muitos homens com quem
se deitou. Dos infernos que viveu.
No começo dos anos dois mil, conseguiu entrar na França
depois de um tempo na Suíça e acabou em Paris. Lembra a minha Bucareste, tantas
luzes, aqui é o paraíso.
Sua voz de soprano é seu ganha pão. Com um microfone e uma
caixa de som acoplada em rodinhas, mais Baguette na coleira, percorre as
estações. De cor sabe as canções que aprendeu nas aulas de canto, quando tinha dez
anos, quando seus pais eram vivos.
Um dia conheceu Paul, de olhos tristes e um passado de que
não fala muito. Além de Baguette, é com Paul
que divide seu papelão, a manta quadriculada, os pratos de ágata, os talheres
de latão e a garrafa térmica com chá. Vien,
Baguette, vien, ela chama a vira-lata e oferece uma quentinha com restos do
frango que arrumou.
A mulher passa naquela hora, se enternece com elas, desce a
escada do metrô.
***
Em 1960 e tantos, Per tinha dezesseis
anos e saiu de Oslo, sua terra natal. Nada acontecia ali, a não ser neve e frio e alguns
meses bons, quando o sol ficava no alto até quase a meia noite e se tocava música
na rua naquele lusco-fusco. Mas aquilo era pouco, muito pouco para seus sonhos
e um dia Per se aventurou a ir para Londres, o centro do universo, pensava.
Mochila nas costas, a guitarra
na caixa, ia ser músico. Estava decidido. Deixou o cabelo crescer, a despeito
da contrariedade do pai, que o queria advogado como ele. Não criei meu filho único
para sair por aí, ou volta ou te deserdo, o pai ameaçou.
Per nunca voltou para saber se
havia cumprido a promessa. E se era vivo ou não. Que fim levou sua mãe. Nunca
quis saber, não havia nada a tratar com nenhum dos dois. Com o tempo, virou
Paul, como um de seus ídolos. Ácido, doideiras, as coisas acontecem sem a gente
perceber, ele acha.
Quando viu, estava em São
Francisco, vivendo em uma comunidade que plantava sua própria comida, além da
própria erva. Uns criavam os filhos de outros e ele criou algumas crianças. Fez protestos contra a guerra da Coreia,
ergueu cartazes, saiu em marchas. Fez o mesmo contra a guerra da Vietnam. E por
fim a do Golfo, mas aí se cansou. As coisas não mudam, é guerra atrás de
guerra, isso não tem fim.
Ganhou o mundo de novo. Perambulou
pela Ásia e África. Um dia foi para Paris atrás de Camille, uma francesa por
quem se apaixonou nos campos de refugiados da Somália, onde foram voluntários.
Mas as coisas não acontecem como nos sonhos, Paul aprendeu isso quando Camille o
largou por outro e seguiu seu rumo. Dizem que foi para a Índia. E Paul ficou
ali, sozinho em Paris, até conhecer Christina.
Ele toca Bob Dylan no metrô. A
linha 1 é a preferida, dá muito movimento. A mulher que acabou de ver Baguette,
a vira lata, lá fora, entra no trem e observa a cabeleira cheia de fios brancos
presa num rabo de cavalo de Paul, as rugas que tomam o rosto, a guitarra
atravessada no peito, a gaita presa no pescoço, as unhas crescidas para facilitar
o manuseio das cordas. Blowing in the wind, the answer is blowing
in the wind.
***
Em Abu Dhabi de vez em quando sopra um vento quente que
desarruma os cabelos. Há certa vantagem no véu, pensa a mulher, que não o usa,
é ocidental, não precisa. O sol se põe e vem um lusco fusco como na Oslo de
Per. As partículas de areia do deserto
flutuam no ar. Ela entra no mercado, um oásis de frescura, e pega o elevador.
A porta quase fechava quando uma mulher vestida de preto, o
rosto coberto, luvas pretas, apenas os olhos expostos, ganha o cubículo. Olhos
arredondados, repuxados no canto. A mulher e suas quatro crianças de pele
morena. Um cachorro marrom, grande, pelo curto. Tem o olhar carente dos
cachorros. Não lembra Baguette. Dois meninos de uns dez, doze anos, e duas
meninas bem menores. Ela, a mulher ocidental, pode ver a penugem dos garotos
sob o nariz e nas costeletas, que seriam bastas dentro de mais alguns anos, a
adolescência estava à beira.
Também mais um tempo e as meninas
irão passar pelo ritual de retirada dos clitóris. É da cultura, dizem, e fecham os olhos para a mutilação.
A mulher de preto, ali, ao lado da mulher ocidental, deve tê-lo enfrentado, deve
ter sentido medo, chorado, sangrado, percebido o corpo cicatrizar e se rasgar
de novo na noite de núpcias. As
meninas irão passar por isso, fatalmente, como aconteceu um dia também com a avó, a bisa e todas as mulheres que formaram seu clã. Vão ganhar vestes iguais às da mãe para que não
coloquem nenhum homem em tentação. Depois, um dia, se casarão com alguém escolhido pelo pai. É tão certo quanto a oração que vai
ser feita logo mais, com seu som melodioso.
O fio branco do fone que conecta a mulher de preto ao Iphone
traz o século vinte e um para aquela figura do século seis. A porta se abre e a
mulher de preto sai com as crianças. O cachorro segue, abana o rabo, alheio aos
pensamentos da mulher ocidental, que fica no elevador, observando os cinco
sumirem num corredor cheio.
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