Bart chegou em casa num 21 de setembro. Só 45 dias, um tiquinho de
gente, de cachorro. Nascera em 8 de agosto. De 2003, lá no começo do século. Passou
tanto tempo, passou tão rápido, aconteceu tanta coisa nesse intervalo entre
aquele dia e hoje, em que observo sua velhice estendida no sofá.
Era domingo de sol. A ninhada
reunida em torno da mãe, pretinha como ele, focinho e patas caramelo. As
fêmeas bege, a cara do Oto, já tinham
dono. Oto, o nome do pai, nunca esqueci. O da mãe eu não me lembro. Iriam
embora em dois ou três dias, as fofuras douradas.
O prometido para nós era outro, um pouco maiorzinho. Corria e tudo o danado, explorava o terreno
cheirando os cantos, comia a comida dos outros, dava latidos curtos e implicava
com os irmãos. Em um minuto mordiscou a ponta do cadarço do tênis que
calçávamos. Peste.
O menor de todos, o frágil, o medroso, me olhou de onde estava, protegido pela
barriga gorda da mãe. E que olhos, meus deus, que olhos. Olhos pidões, caídos,
mas vivos, percebendo um mundo que deveria existir à sua volta. Assustado,
claro, afinal o mundo amedronta mesmo, ainda mais tendo tudo isso a se
descobrir além do gramado. Depois do portão.
Da rua.
Eu o peguei no colo com delicadeza e não consegui mais largar. A
orelha com uma penugem na parte de trás, a barriga cheia, rosada, as unhas
finas a me espetar. E que pelo macio, brilhoso, que cheiro bom, de leite e de
ração e sei lá de quê, de terra, de mato, de pulgas talvez.
No carro, enrolado na minha jaqueta, o choro não parou até chegar em
casa. Era tão inocente, tão bobinho, coitado, que não sabia beber água na
tigela e meio que enfiou o focinho inteiro, espirrou, entornou.
A comida eu dei na boca, e inauguramos ali, no mesmo dia, um jeito
de nos tratarmos em que ele entende tudo que falo, os meus gestos, embora só
faça o que quer, o sem vergonha. Eu aceito todos os resmungos, os latidos
bravos e os de chamar a atenção, atendo os pedidos. Ou não. Depende do dia, da hora, ele sabe disso. Ele
acha que manda, eu penso que sou eu a chefe e assim tocamos até aqui.
Naqueles primeiros tempos, lá em 2003, naquele passado hoje tão
distante e que passou tão rápido, ele andava aos tropeções. E de uma hora para
a outra aprendeu a controlar as pernas e inaugurou o que demos o nome de
circuito Bart: voltas e mais voltas correndo pela sala, pulando no sofá, apesar
das patas tão curtas. Especialmente de manhã, quando acordava, como a saudar o
dia inteiro pela frente. A minhoca maluca.
O circuito Bart agora, aos treze, é mais raro. Subir no sofá
sozinho só quando há muita disposição, uma almofada dando sopa, por exemplo,
pronta para ser estraçalhada. Ainda. Aos treze.
Nos tempos atuais a vontade de dormir é maior que nunca, embora a
nossa caminhada diária esteja garantida, do mesmo jeito que a água de coco ao
fim do passeio. É um ritual sagrado, só
quebrado nos dias de chuva, e chove pouco. Não inventa novidade, parece dizer
quando resolvo andar um quarteirão a mais. E trava, empaca, bicho teimoso, e faz ele
mesmo o caminho de volta para casa, o rabo em pé. Eu só o sigo, é meu papel.
Resmungão, agora reclama muito mais e late à toa, a me lembrar a
toda hora estou cansado, me ouve, respeita meus cabelos brancos e não demora,
faz logo a minha vontade. E eu faço, vou dizer o quê nessa altura do
campeonato.
Um erro enorme de quem inventou tudo, o mundo, o universo, a vida,
é que o tempo passa dessa forma tão acelerada.
Poderia ser mais lento, sem perder o fôlego desse jeito.
Observo a velhice estendida no sofá, o mafuá da manta, e preparo o
frango com arroz e cenoura especial para o aniversário. Bem molinho, uma quase canja, que é como ele
gosta.
Hoje o dia começou com palitos comestíveis e um coco inteiro para
cravar os dentes e sentir a carne macia. Coisa dos deuses dos cachorros.
Te amo, bicho. Você entende
o som, a ternura na voz, amor da vida, e abana o rabo preguiçosamente enquanto
te olho espreguiçar. E só peço ao
universo que o tempo passe meio devagar para garantir mais alguns bons anos
juntos. Em paz. Com saúde. E amor, mas isso já está garantido há treze anos.
E um monte de cocos gelados com a carne macia.