Pombo observa praça em Oslo |
Querido,
Cheguei a São Paulo.
A previsão me atrapalhou. E o engano foi feio. Está frio e eu só tenho um casaco leve. E uma echarpe. Deixei as
botas em casa, logo eu, que adoro botas e não tenho quase chance de usá-las.
Céu cinzento como é de praxe na cidade.
Eu gosto desse clima nublado. Talvez haja um certo blue aqui dentro de mim.
Dias ensolarados em excesso me causam agonia. Há certa paz assim, com a neblina, uma beleza esse lusco-fusco, sabe?
É olhar de um certo
jeito, não precisa ser espremido entre mar e montanha. Nem tudo é um espetáculo solar,
aplausos ao pôr-do-sol. Não tem porquê escancarar a felicidade para todos verem, como
se ela, essa bendita felicidade, estivesse no sol a sair de cena de fininho,
morrer atrás de uma pedra, flagrar a bola avermelhada e postar no Insta. Não tenho
capacidade de entender essa alegria toda, essa conversa
regada a chope e suor em mesas nas calçadas. Você tem, querido?
Felicidade tem mais a ver com o caminhar pelos jardins num dia menos luminoso, olhar os
patos, marrecos, cisnes, que bichos são esses? o lago, a cascata, aquela estátua contra a
luz. Você já reparou que em cima de todo monumento, qualquer
um, vem sempre um pombo pousar? Você me olha admirado e eu repito, é sim, olha ali, em qualquer lugar. Aqui, em Oslo, Berlim, Paris, Veneza.
Reykjavik. Os pombos observam as cidades do alto de
cabeças de bronze, é sempre assim.
Desço as escadas do
avião e entro no ônibus. O que aconteceu com os fingers? Toda hora esses ônibus
cheirando a diesel e a gente
tropeçando nas malas atiradas aos pés de cada um.
Coisa chatinha essa. Gosto de fingers, de
sair direto puxando minha mala e sumir no saguão. Um cara fala alto e me olha. Nossos olhares se
cruzam algumas vezes. Houve tempo em que meu olhar não cruzava o de ninguém. Mal olhava para
mim. Meu mundo era fechado, islâmico, encoberto. E de repente se abriu. E está numa expansão veloz. Ainda
bem, eu digo, agradeço aos astros, aos deuses, ao universo, eu que sou a cética
materialista. E penso em quanto tempo
perdido. Esses anos todos a reinventar.
Os mundos se abrem, sabia? Quando a gente
percebe, está por aí, passeando em jardins, admirando patos, sorrindo
para estátuas. O cara que fala alto ao meu lado diz que faz polo aquático e que foi a uma
festa incrível ontem à noite. Tenta impressionar uma moça que está visivelmente louca de
vontade de cair fora dali. Eu penso em você e que faz frio aqui fora. E que eu só trouxe o casaco
leve. Vou me dar mal.
Querido.
Táxi em São Paulo num
domingo você não tem ideia de como é: sem
fila. Gentileza. A Vinte e Três está vazia. A paisagem é feia, concordo, mas de alguma forma me encanta. Gosto de arranha-céus. E de cidades desertas. Queria acordar como Tom Cruise em Vanilla Sky e não ter ninguém na rua. Deve ser o blue aqui dentro. E mais um filme para a nossa lista.
Mais uma música também. Paul cantando Vanilla enquanto corro dá um pique, sabe?
Uma bruxa me espera no saguão do hotel. Quase
Halloween e ela distribui balas aos hóspedes.
Uma bala laranja, que eu recuso, não obrigada. Não gosto de balas laranjas. Nem amarelas. Ou verdes.
Acho que não gosto de balas. Só de chocolate.
E enquanto eu preencho a ficha na recepção com
endereço falso - sempre preencho endereços falsos, é minha hora de viver
a fantasia de não morar onde moro, de ser outra pessoa, a Phoebe de Friends, por exemplo, Prince Street e café no Central Perk – a feiticeira
leva os gringos que
estavam assistindo ao futebol na recepção para uma festa.
Mais tarde, estão todos no restaurante dos fundos. Uns carinhas de camisa laranja, iguais às balas, a pele com
um tom próximo, e mulheres de preto, com capa, chapéus pontudos e maquiagem pesada. Morcegos e caveiras enfeitam as paredes. Não, querido, não estou num sonho, ainda nem
dormi, é cedo para isso, tomo minha sopa, e eles dançam de rosto colado, tão anos setenta, hi-fi, lembra disso?
Um telão passa um futebol de salão, coisa
sem graça, até eu faria um gol naquele campo pequenino. Faria não? Ah, I did,
olha só, e chuto no ar direto na trave. Nada combina com nada, é o que
eu acho, e aí te pergunto:
quem disse que tem que combinar? Eles
estão felizes ali, agarradinhos, a noite vai ser
boa para eles e é isso que vale. Cada um inventa seu tempo à sua maneira.
E eu? Eu bem acordada aqui no quarto. Vai fazer
frio amanhã e só tenho o casaco leve. Pena não ter vindo de
botas. There’s too much love no Ipad.
Danço assim mesmo, sem você, sozinha no quarto,
sem rosto colado. A TV em mute. E sinto uma
alegria boba, fora de hora, mas esse
contentamento, essa alegria sem
sentido, me invade. E eu danço.
Amanhã o dia vai ser corrido. E eu vou sentir
falta de você. Eu sempre digo isso, meu problema é a repetição. Falta de você.
Querido.
It's safer not to look around
There's no hide my feelings from you now
But too much love to go around these days