terça-feira, 27 de outubro de 2015

TOO MUCH LOVE

Pombo observa praça em Oslo


Querido,

Cheguei a São Paulo.

A previsão me atrapalhou. E o engano foi feio. Está frio e eu só tenho um casaco leve. E uma echarpe.  Deixei as  botas em casa, logo eu, que adoro botas e não tenho quase chance de usá-las.

u cinzento como é de praxe na cidade. Eu gosto desse clima nublado. Talvez haja um certo blue aqui dentro de mim. Dias ensolarados em excesso me causam agonia. Há certa paz assim, com a neblina, uma beleza esse lusco-fusco, sabe?  É olhar de um certo jeito, não precisa ser espremido entre mar e montanha. Nem tudo é um espetáculo solar, aplausos  ao pôr-do-sol. Não tem porquê escancarar a felicidade para todos verem, como se ela, essa bendita felicidade, estivesse no sol a sair de cena de fininho, morrer atrás de uma pedra, flagrar a bola avermelhada e postar no Insta. Não tenho capacidade de entender essa alegria toda, essa conversa regada a chope e suor em mesas nas calçadas. Você tem, querido?

Felicidade tem mais a ver com o  caminhar pelos jardins num dia menos luminoso, olhar os patos, marrecos, cisnes, que bichos são esses? o lago, a cascata, aquela estátua contra a luz.  Você reparou que em cima de todo monumento, qualquer um, vem sempre um pombo pousar? Você me olha admirado e eu repito, é sim, olha ali,  em qualquer lugar.  Aqui, em Oslo, Berlim, Paris, Veneza. Reykjavik. Os pombos observam as cidades do alto de cabeças  de bronze, é sempre assim.

Desço as escadas do avião e entro no ônibus. O que aconteceu com os fingers? Toda hora esses ônibus  cheirando a diesel  e a gente tropeçando nas malas atiradas aos pés de cada um.  Coisa chatinha essa. Gosto de fingers, de sair direto puxando minha mala e sumir no saguão. Um cara fala alto e me olha. Nossos olhares se cruzam algumas vezes. Houve tempo em que meu olhar não cruzava o de ninguém. Mal olhava para mim. Meu mundo era fechado, islâmico, encoberto. E de repente se abriu. E está numa expansão veloz. Ainda bem, eu digo, agradeço aos astros, aos deuses, ao universo, eu que sou a cética materialista.  E penso em quanto tempo perdido. Esses  anos todos a reinventar.

Os mundos se abrem, sabia? Quando a gente percebe, está por aí, passeando em jardins, admirando patos, sorrindo para estátuas. O cara que fala alto ao meu lado diz que faz polo aquático e que foi a uma festa incrível ontem à noite. Tenta impressionar uma moça que está visivelmente louca de vontade de cair fora dali. Eu penso em você e que faz frio aqui fora. E que eu só trouxe o casaco leve. Vou me dar mal.

Querido. 

xi em São Paulo num domingo você não tem ideia de como é: sem fila.  Gentileza. A Vinte e Três está vazia. A paisagem é feia, concordo, mas de alguma forma me encanta. Gosto de arranha-céus. E de cidades desertas. Queria acordar como Tom Cruise em Vanilla Sky e não ter ninguém na rua. Deve ser o blue aqui dentro. E mais um filme para a nossa lista. Mais uma música também. Paul cantando Vanilla enquanto corro dá um pique, sabe?

Uma bruxa me espera no saguão do hotel. Quase Halloween e ela distribui balas aos hóspedes.  Uma bala laranja, que eu recuso, não obrigada.  o gosto de balas laranjas. Nem amarelas. Ou verdes. Acho que não gosto de balas. Só de chocolate.

E enquanto eu preencho a ficha na recepção com endereço falso - sempre preencho  endereços falsos, é minha hora de viver a fantasia de não morar onde moro, de ser outra pessoa,  a Phoebe de Friends, por exemplo,  Prince Street e café no Central Perk  – a feiticeira leva os gringos que estavam assistindo ao futebol na recepção para uma festa.  

Mais tarde, estão todos no restaurante dos fundos. Uns carinhas de camisa laranja, iguais às balas, a pele com um tom próximo, e mulheres de preto, com capa, chapéus pontudos e maquiagem pesada. Morcegos e caveiras enfeitam as paredes. Não, querido, não estou num sonho, ainda nem dormi, é cedo para isso, tomo minha sopa, e eles dançam de rosto colado, tão anos setenta, hi-fi, lembra disso?

Um telão passa um futebol de salão, coisa sem graça, até eu faria um gol naquele campo pequenino. Faria não? Ah, I did, olha só, e chuto no ar direto na trave. Nada combina com nada, é o que eu acho, e aí te pergunto: quem  disse que tem que combinar? Eles estão felizes ali, agarradinhos, a noite vai ser boa para eles e é isso que vale. Cada um inventa seu tempo à sua maneira.

E eu? Eu bem acordada aqui no quarto. Vai fazer frio amanhã e só tenho o casaco leve. Pena não ter vindo de botas.  Theres too much love no Ipad.  Danço assim mesmo, sem você, sozinha no quarto, sem rosto colado.  A TV em mute. E sinto uma alegria boba, fora de hora, mas esse contentamento, essa alegria sem sentido, me invade. E eu danço.

Amanhã o dia vai ser corrido. E eu vou sentir falta de você. Eu sempre digo isso, meu problema é a repetição. Falta de você. Querido.

It's safer not to look around
There's no hide my feelings from you now

But too much love to go around these days

terça-feira, 6 de outubro de 2015

SHOTS

Vitrine em Paris, próxima à Sacre Coeur


 Em Paris, cada cachorro tem seu mendigo, a mulher percebe isso.  Baguette, uma vira-lata marrom de pelo grosso e comprido, mais escuro do que deveria por causa da sujeira, é dona de Christina, uma romena de pele muito clara, mas também mais escurecida do que deveria por causa da sujeira.  É bastante encardida a rua do Quartier-Latin onde vivem.

Christina tinha dez anos quando seus pais, ainda estudantes, se juntaram às hordas que queriam o fim do regime liderado por Ceasescu. Foram batalhas violentas, mais de mil sucumbiram. Massacrados os pais, a menina foi parar num orfanato, com outros filhos de gente que lutou pelo fim do comunismo, coisa que ela nunca entendeu muito bem como funciona. Bom é viver aqui, em frente à Saint Julien, diz e sorri, os dentes estragados pela nicotina e pelo uso de drogas.

Assim que seus seios despontaram, sofreu estupros diários. O vigilante da casa dos órfãos não conseguia se controlar. A direção fazia vista grossa, quem há de defender esses merdinhas, eles que se virem, ouvia. Os infernos são tão variados e ela os experimentou todos, depois, quando conseguiu escapar daquele, lá pelos quatorze anos.

De Bucareste, perambulou por alguns países do leste, passou por Budapeste, Belgrado, Sófia, Sarajevo, Praga. Fez shows de strip-tease, acabou na prostituição. Tinha corpo que despertava o desejo dos homens, pernas compridas e bem torneadas, peitos fartos e duros, era quase um destino. Amigas ocasionais encontraram maridos e ficaram bem de vida, mas aquilo não era para ela. Sente nojo até hoje quando se lembra das noites do orfanato e dos muitos homens com quem se deitou. Dos infernos que viveu.

No começo dos anos dois mil, conseguiu entrar na França depois de um tempo na Suíça e acabou em Paris. Lembra a minha Bucareste, tantas luzes, aqui é o paraíso.

Sua voz de soprano é seu ganha pão. Com um microfone e uma caixa de som acoplada em rodinhas, mais Baguette na coleira, percorre as estações. De cor sabe as canções que aprendeu nas aulas de canto, quando tinha dez anos, quando seus pais eram vivos.

Um dia conheceu Paul, de olhos tristes e um passado de que não fala muito.  Além de Baguette, é com Paul que divide seu papelão, a manta quadriculada, os pratos de ágata, os talheres de latão e a garrafa térmica com chá. Vien, Baguette, vien, ela chama a vira-lata e oferece uma quentinha com restos do frango que arrumou.

A mulher passa naquela hora, se enternece com elas, desce a escada do metrô.

***

Em 1960 e tantos, Per tinha dezesseis anos e saiu de Oslo, sua terra natal. Nada  acontecia ali, a não ser neve e frio e alguns meses bons, quando o sol ficava no alto até quase a meia noite e se tocava música na rua naquele lusco-fusco. Mas aquilo era pouco, muito pouco para seus sonhos e um dia Per se aventurou a ir para Londres, o centro do universo, pensava.

Mochila nas costas, a guitarra na caixa, ia ser músico. Estava decidido. Deixou o cabelo crescer, a despeito da contrariedade do pai, que o queria advogado como ele. Não criei meu filho único para sair por aí, ou volta ou te deserdo, o pai ameaçou.

Per nunca voltou para saber se havia cumprido a promessa. E se era vivo ou não. Que fim levou sua mãe. Nunca quis saber, não havia nada a tratar com nenhum dos dois. Com o tempo, virou Paul, como um de seus ídolos. Ácido, doideiras, as coisas acontecem sem a gente perceber, ele acha.

Quando viu, estava em São Francisco, vivendo em uma comunidade que plantava sua própria comida, além da própria erva. Uns criavam os filhos de outros e ele criou algumas crianças.  Fez protestos contra a guerra da Coreia, ergueu cartazes, saiu em marchas. Fez o mesmo contra a guerra da Vietnam. E por fim a do Golfo, mas aí se cansou. As coisas não mudam, é guerra atrás de guerra, isso não tem fim.

Ganhou o mundo de novo. Perambulou pela Ásia e África. Um dia foi para Paris atrás de Camille, uma francesa por quem se apaixonou nos campos de refugiados da Somália, onde foram voluntários. Mas as coisas não acontecem como nos sonhos, Paul aprendeu isso quando Camille o largou por outro e seguiu seu rumo. Dizem que foi para a Índia. E Paul ficou ali, sozinho em Paris, até conhecer Christina.

Ele toca Bob Dylan no metrô. A linha 1 é a preferida, dá muito movimento. A mulher que acabou de ver Baguette, a vira lata, lá fora, entra no trem e observa a cabeleira cheia de fios brancos presa num rabo de cavalo de Paul, as rugas que tomam o rosto, a guitarra atravessada no peito, a gaita presa no pescoço, as unhas crescidas para facilitar o manuseio das cordas.  Blowing in the wind, the answer is blowing in the wind.

***

Em Abu Dhabi de vez em quando sopra um vento quente que desarruma os cabelos. Há certa vantagem no véu, pensa a mulher, que não o usa, é ocidental, não precisa. O sol se põe e vem um lusco fusco como na Oslo de Per.  As partículas de areia do deserto flutuam no ar. Ela entra no mercado, um oásis de frescura, e pega o elevador. 

A porta quase fechava quando uma mulher vestida de preto, o rosto coberto, luvas pretas, apenas os olhos expostos, ganha o cubículo. Olhos arredondados, repuxados no canto. A mulher e suas quatro crianças de pele morena. Um cachorro marrom, grande, pelo curto. Tem o olhar carente dos cachorros. Não lembra Baguette. Dois meninos de uns dez, doze anos, e duas meninas bem menores. Ela, a mulher ocidental, pode ver a penugem dos garotos sob o nariz e nas costeletas, que seriam bastas dentro de mais alguns anos, a adolescência estava à beira.

Também mais um tempo e as meninas irão passar pelo ritual de retirada dos clitóris. É da cultura, dizem, e fecham os olhos para a mutilação. A mulher de preto, ali, ao lado da mulher ocidental, deve tê-lo enfrentado, deve ter sentido medo, chorado, sangrado, percebido o corpo cicatrizar e se rasgar de novo na noite de núpcias. As meninas irão passar por isso, fatalmente, como aconteceu um dia também com a avó, a bisa e todas as mulheres que formaram seu clã. Vão ganhar vestes iguais às da mãe para que não coloquem nenhum homem em tentação.  Depois, um dia, se casarão com alguém escolhido pelo pai. É tão certo quanto a oração que vai ser feita logo mais, com seu som melodioso.  

O fio branco do fone que conecta a mulher de preto ao Iphone traz o século vinte e um para aquela figura do século seis. A porta se abre e a mulher de preto sai com as crianças. O cachorro segue, abana o rabo, alheio aos pensamentos da mulher ocidental, que fica no elevador, observando os cinco sumirem num corredor cheio.