Ana, de vermelho. Anna, de amarelo. |
Vinícius tem um poema que começa assim:
"Procura-se um amigo para
gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que saiba
conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações
da infância."
Há alguns anos escrevi isso para a Ana
Cristina, primeira amiga de infância de quem tenho lembranças. Nós nos conhecemos, eu com quatro anos, ela com
cinco, no dia em que me mudei para a casa onde passei a infância e
adolescência, em Teresópolis. Ela morava com os avós ao lado. O muro de
concreto dividia o território e vivíamos ali, um banquinho ou uma escada nos
ajudava a conversar cara a cara. Ou então das janelas dos nossos quartos, um de
frente para o outro. Batíamos muito papo, não me recordo sobre o quê, mas era
muito, era o dia inteiro.
Brincar de boneca de papel era a diversão
favorita. Nem sei se existem mais as bonecas de papel, eu tinha o Gilson e a
Sarita, minhas preferidas, ele de cabelo preto, ela loura de maria-chiquinha.
Nos meus aniversários, além da festinha
em casa com cachorro quente, rissoles, bolo e brigadeiro, sempre saíamos para
jantar fora, papai, mamãe, eu e a Ana. Nos aniversários dela, tinha o melhor estrogonofe
do mundo, e o bolo de chocolate mais espetacular, tão boa cozinheira é a mãe
dela. Não existe estrogonofe ou bolo de chocolate iguais.
Iracema era sua avó, uma senhorinha de
cabelos grisalhos, bochechuda e boa como são as avós. Todos os dias, às seis da tarde, ouvia a Ave
Maria no rádio, botava a água fresca no copo para ser benzida, acendia uma vela
e, quando eu estava lá, me ajoelhava e rezava junto. Até hoje, quando ouço a
Ave Maria de Gounod, sinto um aperto no peito e me vêm à memória a reza, a
água, a vela. Foi ela quem cuidou de mim quando o papai ficou no hospital e era
a ela quem eu procurava quando a mamãe tinha crises de enxaqueca. E aí o almoço
era sempre bife à milanesa, que a Iracema sabia que eu adorava.
Cosme e Damião era uma festa para aquela
família. Havia almoço com comida mais chique, ia sempre muita gente, minha avó,
o padre inclusive, e depois saíamos numa Kombi para distribuir balas para as
crianças e velhinhos no asilo. Era uma alegria os dias que antecediam a grande
data, porque ajudávamos a encher os saquinhos de doce e acabávamos devorando um
monte deles. Ah, as marias-moles, ah os pés-de-moleque.
Como eu, a Ana adorava bichos, mas ela
ganhava os animaizinhos e a avó não deixava ficar, vai dar muito trabalho,
então depois de chorar muito e perceber que não adiantava insistir, ela os levava
lá para a minha casa, onde tinham boa acolhida.
Juntas, tivemos pintinhos amarelos
adoráveis que viraram galinhas insuportáveis e depois a mamãe teve que passá-las
adiante, arrumar um galinheiro. Além do trabalho que davam, eu morria de medo
delas, que corriam atrás de mim, as asas abertas. E aí nossa dálmata Tuska
corria atrás das galinhas. E então a mamãe corria atrás de todos os bichos, me
acolhia do ataque das galinhas e ficava tudo bem. Mas era isso o dia inteiro e
alguém levou as galinhas embora. Nunca mais se soube delas.
Tempos depois, tivemos tartarugas que
viveram anos. Dávamos alface e cenoura para as bichinhas. Um dia acabaram sendo
comidas pela Ritoca, minha Fox paulistinha. Como, Ritoca, você fez isso, só
deixou as casquinhas? Ela baixava a cabeça, olhava as próprias patas e tentava
abanar o cotoco de rabo.
Ana e eu sempre adoramos cachorros. Um
dia ela achou um vira-lata na rua e levou para casa. Deu banho, comprou
caminha, pratinhos e levou ao veterinário, onde o bicho foi vacinado e
vermifugado. Chegou em casa, olhou o cachorro e percebeu que ele era muito
feio. E aí desandou a chorar. E sempre que chorava, corria lá para casa e quem
a consolava era a mamãe. Ela deu o cachorro feio para alguém e depois ganhou a
Petit, uma cocker preta que nunca se deu bem com a Ritoca. O muro virou uma
faixa de gaza para aquelas duas.
Da minha varanda, hoje em dia, vejo seu
prédio. A lagoa no meio. Continuamos
vizinhas por um tempo, mas Ana se foi há três anos. Como o universo age assim,
e leva a Ana embora para outra existência, deixando isso tudo aqui, marido,
filhos, um shitzu, o Chope, amigos, eu me pergunto. Não acho respostas.
Hoje seria dia de festa. Ana faria 49
anos. Se fosse na década de 70, haveria um hi-fi, nós usaríamos calças bocas de
sino e frente única, serviriam o famoso estrogonofe. Há três anos, houve um
churrasco, onde rimos, nos divertimos. Compramos uma blusa igual, combinávamos
quando uma ia usar, para a outra não copiar.
Talvez tenha festa onde ela está. Meu pai e
meu irmão estão juntos, também faziam aniversário hoje, e quem sabe não apagam
a velinha juntos. De um bom bolo de chocolate.
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