quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ANA CRISTINA

Ana, de vermelho. Anna, de amarelo.


Vinícius tem um poema que começa assim: "Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da infância."


Há alguns anos escrevi isso para a Ana Cristina, primeira amiga de infância de quem tenho lembranças. Nós  nos conhecemos, eu com quatro anos, ela com cinco, no dia em que me mudei para a casa onde passei a infância e adolescência, em Teresópolis. Ela morava com os avós ao lado. O muro de concreto dividia o território e vivíamos ali, um banquinho ou uma escada nos ajudava a conversar cara a cara. Ou então das janelas dos nossos quartos, um de frente para o outro. Batíamos muito papo, não me recordo sobre o quê, mas era muito, era o dia inteiro.

Brincar de boneca de papel era a diversão favorita. Nem sei se existem mais as bonecas de papel, eu tinha o Gilson e a Sarita, minhas preferidas, ele de cabelo preto, ela loura de maria-chiquinha.

Nos meus aniversários, além da festinha em casa com cachorro quente, rissoles, bolo e brigadeiro, sempre saíamos para jantar fora, papai, mamãe, eu e a Ana. Nos aniversários dela, tinha o melhor estrogonofe do mundo, e o bolo de chocolate mais espetacular, tão boa cozinheira é a mãe dela. Não existe estrogonofe ou bolo de chocolate iguais.

Iracema era sua avó, uma senhorinha de cabelos grisalhos, bochechuda e boa como são as avós.  Todos os dias, às seis da tarde, ouvia a Ave Maria no rádio, botava a água fresca no copo para ser benzida, acendia uma vela e, quando eu estava lá, me ajoelhava e rezava junto. Até hoje, quando ouço a Ave Maria de Gounod, sinto um aperto no peito e me vêm à memória a reza, a água, a vela. Foi ela quem cuidou de mim quando o papai ficou no hospital e era a ela quem eu procurava quando a mamãe tinha crises de enxaqueca. E aí o almoço era sempre bife à milanesa, que a Iracema sabia que eu adorava.

Cosme e Damião era uma festa para aquela família. Havia almoço com comida mais chique, ia sempre muita gente, minha avó, o padre inclusive, e depois saíamos numa Kombi para distribuir balas para as crianças e velhinhos no asilo. Era uma alegria os dias que antecediam a grande data, porque ajudávamos a encher os saquinhos de doce e acabávamos devorando um monte deles. Ah, as marias-moles, ah os pés-de-moleque.

Como eu, a Ana adorava bichos, mas ela ganhava os animaizinhos e a avó não deixava ficar, vai dar muito trabalho, então depois de chorar muito e perceber que não adiantava insistir, ela os levava lá para a minha casa, onde tinham boa acolhida.

Juntas, tivemos pintinhos amarelos adoráveis que viraram galinhas insuportáveis e depois a mamãe teve que passá-las adiante, arrumar um galinheiro. Além do trabalho que davam, eu morria de medo delas, que corriam atrás de mim, as asas abertas. E aí nossa dálmata Tuska corria atrás das galinhas. E então a mamãe corria atrás de todos os bichos, me acolhia do ataque das galinhas e ficava tudo bem. Mas era isso o dia inteiro e alguém levou as galinhas embora. Nunca mais se soube delas.

Tempos depois, tivemos tartarugas que viveram anos. Dávamos alface e cenoura para as bichinhas. Um dia acabaram sendo comidas pela Ritoca, minha Fox paulistinha. Como, Ritoca, você fez isso, só deixou as casquinhas? Ela baixava a cabeça, olhava as próprias patas e tentava abanar o cotoco de rabo.

Ana e eu sempre adoramos cachorros. Um dia ela achou um vira-lata na rua e levou para casa. Deu banho, comprou caminha, pratinhos e levou ao veterinário, onde o bicho foi vacinado e vermifugado. Chegou em casa, olhou o cachorro e percebeu que ele era muito feio. E aí desandou a chorar. E sempre que chorava, corria lá para casa e quem a consolava era a mamãe. Ela deu o cachorro feio para alguém e depois ganhou a Petit, uma cocker preta que nunca se deu bem com a Ritoca. O muro virou uma faixa de gaza para aquelas duas.

Da minha varanda, hoje em dia, vejo seu prédio. A lagoa no meio.  Continuamos vizinhas por um tempo, mas Ana se foi há três anos. Como o universo age assim, e leva a Ana embora para outra existência, deixando isso tudo aqui, marido, filhos, um shitzu, o Chope, amigos, eu me pergunto. Não acho respostas.

Hoje seria dia de festa. Ana faria 49 anos. Se fosse na década de 70, haveria um hi-fi, nós usaríamos calças bocas de sino e frente única, serviriam o famoso estrogonofe. Há três anos, houve um churrasco, onde rimos, nos divertimos. Compramos uma blusa igual, combinávamos quando uma ia usar, para a outra não copiar.

Talvez tenha festa onde ela está. Meu pai e meu irmão estão juntos, também faziam aniversário hoje, e quem sabe não apagam a velinha juntos. De um bom bolo de chocolate.



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