Da primeira vez que foi a Brasília, lá pela
década de 90, a mulher sentiu um impacto grande. Estava feliz, tinha vinte e
poucos e sonhos pela frente. Como um João de Santo Cristo, ela ficou bestificada,
não viu as luzes de natal, a época era outra, mas que cidade linda, pensou ao
cruzar o eixo central, passar pela esplanada dos ministérios, o Congresso
concretista erguido, a Catedral, os holofotes sugerindo vida aos monumentos.
O deslumbramento durou menos de um dia.
Instalada numa das quadras, ela não conseguiu voltar para o apartamento depois
de um passeio. Para a mulher, era impossível identificar o prédio onde estava
hospedada tamanha a falta de personalidade das fachadas. Logo ela, com um
sistema de localização natural, que lembrava de referências de qualquer cidade
que visitava e conseguia se situar bem em alemão, árabe ou sueco, se sentiu
perdida ali, numa 403 sul. Ou norte.
Por mais que lhe expliquem a arquitetura baseada
em um avião, não tem jeito. Para essa mulher é impossível se locomover assim,
a esmo. Talvez ela não goste de aviões e isso a impeça de ter uma relação mais
natural com o lugar. Ela gosta mesmo é
de viajar, é fato, mas preferia que já houvesse um teletransportador que a
levasse para onde ela quisesse ir sem precisar de aeroportos, esperar horas
pelo embarque, despachar malas, passar
pelos malditos detectores de metal, como ela diz, ser obrigada a ficar descalça
ou ter a bolsa escolhida aleatoriamente para ser revistada. São pequenas coisas
que se transformam num transtorno, ela entende isso. Mas viaja, fazer o quê, se
pergunta. E viaja.
Também não é grande fã de Niemeyer, mas não
fica a repetir isso por aí. Os tempos atuais andam tão extremos que não gostar
do arquiteto pode ser considerado um ato de direita, de querer a volta da
ditadura, sabe-se lá. Cada vez mais a mulher acha esquisitas as tentativas de
enquadramento das pessoas em categorias previamente catalogadas, tão comuns
nesses radicalismos dos que seguem cartilhas. Ela se sente sem turmas, isolada. Não é disso ou daquilo,
não é assim nem assado. É de tudo, e não é de nada. É. Foi. O futuro não é mais
como era antigamente.
E ela gosta ainda menos de ir ao Congresso,
mas disso o Niemeyer não tem culpa. A vida política se transformou num jogo,
puro poder e dinheiro. Sempre foi assim, dizem. É. Sempre foi. A mulher sente
mal estar ao cruzar as fronteiras daquelas Casas, caminhar pelos labirínticos
corredores forrados de carpetes opressivos, criadouro de ácaros contemporâneos
do próprio Juscelino. Gabinetes e
plenários decorados com móveis alquebrados, em péssimo estado de conservação. É
o que ela pensa. E faz as contas e vê que se paga, por ano, mais de 33 milhões
de reais por cada (e pede perdão pelo cacófato) um dos 81 senadores e quase
sete milhões para cada um dos 513 deputados federais. Fora os funcionários, num
número obsceno, visivelmente sem ter o que fazer, esperando com ares tediosos
para bater o ponto desde as nove horas da manhã. Acha imoral, escorchante, um deboche. Mas é só a opinião dela, não há nada de errado
em ter opinião ainda, não? Ainda.
Bonito, em Brasília, é o céu, vislumbra, eternamente
em cúpula, com nuvens gorduchas. É o que vale a pena, ela pensa enquanto corre
no fim da tarde. Alguma coisa tem que valer a pena. E respira fundo olhando o
horizonte do parque de grama amarelada. Ninhos de coruja cavados na terra
barrenta. O sol se esconde por trás de um prédio quadrado de janelas pequeninas
e os últimos raios tornam a cidade acobreada.
Ao chegar ao Rio, a umidade. A praia se
escancara despudoradamente no caminho. A
ressaca traz ondas ao calçadão.
Lar, Doce Lar escrito no capacho da porta do
vizinho. A casa dela, da mulher, vazia. Capacho cru, sem mensagens. Ninguém mais
mora ali. Acende a luz. O manjericão,
que florescia na cozinha desde maio, está seco como a paisagem de Brasília. O
manjericão não podia fazer isso, logo o manjericão, tão bem cuidado. Que lhe rendia um pesto grosso no molho da
massa, misturado a nozes e queijo parmesão. Ressequido, sem vida. Atira a planta no lixo. E o gesto lhe faz os
olhos ficarem mareados.
Desfaz a mala. Separa as roupas para lavar. O futuro não é mais como era antigamente.