Sossega, é hora de entender o tempo do encontro e o tempo
da despedida. Percebe cada coisa a seu tempo. Lembra: o tempo vai curar.
Não deu tempo.
Não deu tempo de um último beijo. Na hora a gente não sabia que seria o último. E não houve o beijo, o carinho final. Foi assim, fica despedaçado.
Abrupto. Um susto. Que não passa, não se
sai dele. Ninguém diz acorda, foi um sonho ruim.
É o tempo da despedida.
O tempo é o caos. Não há ordem, a gente é que pensa que há.
Não há, aceita que não. E sossega. Dorme um pouco.
É só mais um domingo que vai ficar perdido no tempo, um dia
você vai se lembrar daquele domingo de dois mil e dezessete, em junho, sem tanta dor, um domingo distante. Vai curar. Eu sei que vai, mas até lá como é
que se faz?
E logo um domingo. Com ele não tinha esse problema de melancolia. Não
aos domingos, nem em dia nenhum.
Era acordar preguiçoso, correr pela casa em sinal de alegria
e pronto.
Isso, correr pela casa em sinal de alegria. Quando jovenzinho. Até noutro dia. Agora, no tempo
da velhice, era dia de virar de barriga para cima e a coçadinha. Não existe
mais o agora, o tempo levou. Será que é o sempre o que devo dizer?
Domingo era um passeio maior, sem hora de voltar, o dia de
coco aberto e daquela carninha
macia. De raspar os dentes na borda da casca. De olhar o horizonte. Dia de encanto.
De encantamento, como o domingo que o conhecemos, tão
frágil, pequenino, desnorteado, chamado de pateta por ser boboca, por querer mamar e não se defender.
Sossega, não pensa nisso agora.
Alguns domingos, aqueles diluídos na infância, eram para
cavar, fuçar buracos até a quentura desaparecer e partir para outro buraco em
seguida. E outro. A praia feito a superfície da lua. Então, a água que subia e
molhava a barriga, a água salgada que ele não entendia aquele
sal todo, a areia molhada que entrava entre os dedos.
Outros domingos eram para correr no parque, andar na trilha,
perseguir gatos, latir quando subiam em árvores. Era dia de latidos. Mas
latidos eram todos os dias. O barulho do elevador. A campainha. O interfone. Todos os dias. Pelo coco, pelo almoço e o
jantar, ah os caquis vermelhos, aquele melão. Eram tantos os pedidos e protestos.
Sossega, não lembra disso agora. A gente não controla nada,
entende.
Havia os domingos de quietude, de ouvir a chuva cair, de se
enroscar e tirar um cochilo maior, de procurar as migalhas sob a mesa. Era dia
de deitar no sofá, entre as pernas, enquanto se lia o jornal. Os
afagos no sentido contrário ao pelo, a maciez atrás das orelhas.
Embora isso fosse todos os dias. O tempo todo, o cochilo, as
migalhas, o sofá, os afagos.
Depois o banho, sagrado aos domingos. Escovar
dentes, limpar ouvido, vai lá, pega sua toalha.
E não lambe o sabonete. A gente é feito de rituais, a gente e os bichos,
se preparar para a semana, quase um ir à missa Porque afinal
era domingo. E não lambe o sabonete.
A música sempre. Às vezes a dança. Cabecinha
repousada no meu ombro, minha mão segurando a coluna, a outra servindo como
apoio nas pernas. E vinha uma lambida, assim de repente, do nada, a lambida. Roubava
um beijo, era o que fazia. Não só aos domingos. O tempo todo.
Sossega, para de lembrar.
Dorme um pouco.
Acalma, vive o tempo da perda, da casa vazia, dos silêncios,
da falta de patinhas a arranhar o chão.
É tempo de imaginar o céu dos cachorrinhos, cheio de árvores
e plantas, água limpa correndo devagar, o sol que brilha e
esquenta, mas não muito forte que é para não queimar as almofadinhas. Lá, nesse
céu dos cachorrinhos, não existem raios nem trovões, ninguém solta foguetes. Não
tem perigo. Não existe medo. A grama é bem verde para se esfregar, num canto tem areia para as escavações quase geológicas. É servido frango com arroz e cenoura, e de sobremesa uma tangerina.
Às vezes tem macarrão. Lá, não se usa coleira, é correr sem pensar em voltar. E depois tirar o
sono dos justos. E de noite, nem te conto, mas de noite tem mil estrelinhas. E você é uma delas, a gente vê daqui.
A gente sempre soube que existia esse céu, que lá os
cachorros são felizes, mas não ia visitar.
Agora vamos.
Agora, não. Sempre.