Mudou a estação.
Já era para ter folhas amareladas caindo
nas ruas, mas ainda faz muito calor e as árvores estão verdíssimas,
florescendo, em festa. As pessoas vão e voltam da praia, os pés de areia, a
nova coleção de biquínis na vitrine, os bares cheios. Aqui as estações não
obedecem nenhum calendário. Agora chove.
Uns pingos grossos, escassos, que só molham o chão. Aumentam a umidade. Meu cabelo
fica péssimo com a umidade. Nesse ponto, viver em Brasília me faria me sentir
mais bonita. Em Brasília, nessa hora, os ratos abandonam o navio.
Existe um verão eterno aqui dentro. O sol
invade as janelas, atravessa as cortinas, se derrama nos móveis, faz da sala
uma estufa que mata as flores. Matou as que você me mandou. Acordei e vi as
rosas com as cabeças abaixadas, desistindo de existir. E chorei. Eu queria
essas rosas para o resto da vida. Guardei as pétalas dentro do livro que você
me deu há tantos anos e que eu carreguei como uma relíquia a cada mudança.
Te mostrei aquela página com a ponta
dobrada. Era o poema que você gostava e que, todos os anos, eu relia no dia do
meu aniversário, como um ritual, e me lembrava de você. Aquela ponta dobrada
pelos seus dedos. As pétalas estão lá, naquela dobra que é você e que eu olhava,
alisava, me lembrava do Jardim Botânico e do seu beijo. Saber que você é real e não a minha imaginação
me traz um encantamento tremendo. É uma das vitórias que trago na vida, pareço
copiar letra do Roberto Carlos, mas é isso. E então toco aquela dobra, sinto a pétala
perdendo o viço, virando um pedaço de papel para pertencer àquela página, numa
espécie de simbiose. E choro de novo. Eu já te disse: sou toda coração. E ao
mesmo tempo você me vê tão dura.
Esse verão eterno aqui dentro me faz
puxar o ar com uma força que eu não
tenho e me dispara o coração. Eu fico coberta de suor. Não sei se transpiro ou
se é a tal da angústia com tanta novidade, com essa mistura de sensações que não
sou capaz de descrever. E aí eu entro em
pane, como a máquina de lavar que acende uns botõezinhos vermelhos quando muito
cheia. Das machine kaput, a única
frase que eu sei em alemão me cai bem nessa hora.
Então respiro fundo, lembro dos mantras
de meditação, engulo o choro, o medo, a fraqueza e penso que tudo vai melhorar
com o ventilador, que vai melhorar com o ar condicionado que um dia vou
comprar. Que vai melhorar com o passar
dos dias. Que vai melhorar quando o outono, enfim, entrar.
Que vai melhorar quando você chegar.
Fui até o mar. Senti a água molhar os
pés, a areia entre os dedos. Fui à noite, uma brisa fresca, algumas estrelas. É
tanta luz que não se vê o céu. O cheiro da maresia me trouxe um pouco de calma,
uma coisa que eu não sei se posso chamar de paz. Ainda. Eu gosto do cheiro de
maresia e de mato da serra. Eu sou um pouco disso tudo, a montanha e o mar aqui
dentro de mim, como o verão que não vai embora.
Eu não sinto saudade da outra vida, a que
acabou, a que ficou nas fotos que guardei e não sei se quero tirar das caixas. A
pedra na varanda, o gigante deitado, a lagoa de água parada, aquela paisagem
escancaradamente bonita e de certa forma triste porque triste era eu quando a olhava. Aquilo tudo
que ficou no caminho. Aquela que eu fui não existe mais. Aquela é tão diferente
de mim.
Eu vivi morrendo a cada dia por uns dez
anos. Agora parei de morrer e parar de morrer assusta um bocado. É o que sou: medrosa, bancando a forte. Querendo um abraço. Me dá um abraço, vem.
Aqui, nessa casa do verão eterno, eu colo
os pedacinhos do que eu fui. Parar de morrer é dolorido. Tem um preço, e não é
só aquele que aparece no extrato do banco. Parece que o caco que eu pego vai
cortando a pele, para depois formar uma cicatriz, a casquinha cair, ou ser
arrancada. Eu tenho a mania de arrancar as cascas das feridas e elas sangram de
novo, formam nova casquinha.
Escuto uma balada pop, pago tevê a cabo com
canais de filmes mas gosto mesmo é de ouvir música no canal 300. Entra uma brisa muito leve, que nem chega a
balançar a cortina. O verão permanece aqui dentro. A chuva não o abrandou. Nem
um pouco. O cachorro dorme ao meu lado no sofá, exausto de mais um dia
estranho.
Admiro os móveis meio que se encolhendo
para manter o vínculo comigo. A cozinha apertada que ainda me atrapalha. Um
aconchego vem dos quartos, daquele canto da estante e poltrona.
Há algo de assombro com a nova vida. Um
maravilhar-se.
Parar de morrer é muito esquisito.